Saúde
08:53 Postado por Geremias Pignaton
Na cozinha, mamãe começava a preparar o almoço. Por baixo da chapa, as labaredas cambaleantes lambiam os fundos das panelas. Numa boca mamãe cozinhava o feijão, noutra esquentava água para matar um frango e a terceira boca estava fechada. A chaleira com café repousava sobre a tampa.
A cozinha era toda coberta com fuligem escura e sobre o fogão havia uma vara amarrada ao teto repleta de lingüiças e outros embutidos do último porco abatido. Mamãe, sentada à enorme mesa de madeira maciça, preparava os temperos para o frango.
Papai entrou, pegou uma caneca esmaltada pendurada num gancho do guarda-comida e encheu-a de café na chaleira. Enquanto bebia falou: “o menino já está no moinho, vou caçar inhambus. Que hora será a ladainha?” Mamãe, sem tirar os olhos do serviço, respondeu: “será às três da tarde, combinei ontem com sua mãe, vêm os Cau, Pissinate, Peruch e até o povo do Parque Alegre vai descer”.
Papai foi para o quarto e quando voltou estava com sua espingarda de cobre pendurada no ombro. Despejou sobre a mesa o conteúdo da velha capanga e começou a conferir o material. Pegou um pio de madeira, soprou e imitou o canto sonoro do inhambu macho. Diziam que ele piava melhor que a própria ave. Balançou o pio perto do ouvido e soprou vigorosamente pela saída de ar para desentupi-lo. Piou novamente e balançou a cabeça em sinal afirmativo. Conferiu a munição e jogou rapidamente tudo de volta para a capanga. Com um canivete cortou uma palha de milho retirada do bolso, encheu-a de fumo e, habilmente, enrolou um cigarro que ascendeu no fogão. Tirou duas baforadas do cigarro e falou: “vou caçar no café velho do Borto, volto logo para o almoço. De tarde vamos à ladainha. Bota sentido no menino que ele não pode voltar de lá sozinho”.
Quando cruzou a soleira da porta e deu os primeiros passos no terreiro, viu a tia subindo o morro, em cima do rochedo, com o menino no colo. Papai sentiu que alguma coisa de ruim havia acontecido. O menino, com três anos quase completos, estava deitado no colo como um bebezinho. Papai gritou: “que foi, aconteceu alguma coisa?” A tia, quando o viu, apressou o passo, quase correu e começou a soluçar chorando. A porta do moinho havia caído sobre o menino. Mamãe escutou e saiu correndo da cozinha para o terreiro.
Titia chegou com o menino meio mole no colo. Ele estava recobrando a consciência e de sua cabeça jorrava sangue. Papai pegou o filhinho no colo e correu para dentro com mamãe e titia atrás. Deitou o menino na cama e começou a examinar a cabeça. Havia um corte feio na testa, onde começam os cabelos. O sangue começava a estancar. Mamãe pegou um lenço na cômoda, dobrou, correu na cozinha e molhou-o em cachaça para pô-lo sobre o ferimento. O menino, agora mais refeito, começou a chorar. Papai deu graças a Deus pelo choro do menino. Mamãe beijou a bochecha para tranqüilizá-lo e, com o lenço embebido na cachaça, pressionou o ferimento. Ao mesmo tempo acariciava o braço. O sangue foi diminuindo e o choro foi se transformando em soluços baixos. Papai tirou titia do quarto, levou-a para a cozinha, serviu água com açúcar para acalmá-la e pediu para contar o acontecido.
Ela disse: “o menino chegou e eu estava ocupada abastecendo o moinho. Fiquei preocupada de não o deixar chegar perto da roda, não podia imaginar que o perigo estava na porta. Não sei como foi, só escutei o baque da porta caindo e quando olhei vi o menino embaixo. Aquela porta é muito pesada. Fiquei desesperada e corri para tirá-lo. Vim correndo para cá”.
Ela falava mais calma, mas ainda tinha a voz embargada pela emoção. Papai tirou o boné, coçou a cabeça e disse: “o culpado fui eu. Vi que aquela porta estava com uma dobradiça soltando e não consertei. Estava muito apressado, deixei para depois e esqueci. Sabia que era perigoso. Aquela porta é muito pesada, é de peroba”.
No quarto, mamãe conversava com o menino. Ele falava bem e não se lembrava do ocorrido. Mamãe já havia examinado todo o corpo do filho que não apresentava nada errado aparente. Além da ferida na cabeça, só um pequeno hematoma no ombro esquerdo. Ele movia todos os membros com desenvoltura e parecia que não sentia nenhuma dor.
Mamãe falou com papai e titia que achava que estava tudo bem e que tudo não passara de um susto. Titia, já refeita do desespero, disse: “vou para o moinho, deixei tudo lá e preciso terminar o trabalho”. Papai pediu a mamãe para fazer um curativo com copaíba na testa do menino e disse que não ia mais caçar.
O menino passou a manhã deitado. Na hora do almoço, mamãe chamou-o para ir à cozinha comer. O menino tentou levantar e não conseguiu andar. Ele se erguia da cama, descia , mas não conseguia se equilibrar de pé. Mamãe tentou ampará-lo dando-lhe a mão, mas o menino não ia. Foi o jeito levá-lo até a mesa para almoçar.
Papai e mamãe comeram em silêncio, estavam preocupados. O menino comeu sozinho, estava bem, mas não conseguia andar. Alguma coisa de mais grave aconteceu. Ele mexia as pernas, mas não conseguia se manter de pé. Não sentia nenhuma dor, o que afastava possibilidade de fratura. Papai disse: “vamos aguardar mais um tempo, um ou dois dias, se ele continuar assim, vamos procurar ajuda”.
Dois dias se passaram sem que o menino apresentasse melhora. Parecia tudo em ordem, mas ele não andava. No terceiro dia à tarde, papai arriou o cavalo e foi procurar um curandeiro chamado Cavaglieri, lá em Monte Seco. No início da noite papai voltou dizendo que o homem viria na manhã seguinte para ver o menino.
Cavaglieri era o “ortopedista” da região. Pequeno agricultor de origem italiana, ele consertava ossos quebrados, botava juntas no lugar, dava massagens, melhorava dor na coluna. Usava apenas as mãos, algumas ervas e benzedura. Ele rezava, mas antes fazia suas intervenções. Todo seu conhecimento era empírico, coisas que ele aprendeu com seu pai, conhecimentos familiares centenários.
Ele chegou cedinho, quase escuro, montado numa égua pampa. Cumprimentou papai e mamãe, tomou uma caneca de café com inhame cozido e foi examinar o menino. Fez várias manobras com as pernas, massagens usando um óleo que tinha numa garrafa, apalpou todo o corpo do menino e, depois de aproximadamente uma hora, já suado, virou-se para papai e disse: “ele não tem nada de errado. Não tem osso quebrado, junta fora de lugar, problema na espinha. Nada! Talvez, a pancada na cabeça tenha atingido os nervos, mas acho que ele melhorará. Vou procurar no mato umas ervas. Vou ensinar sua mulher a preparar, dar banho e dar para beber. Daqui quinze dias eu volto para ver”.
Assim fez. Subiu o Morro Sapateiro e voltou com umas ervas. Ensinou mamãe como preparar e aplicar. Aceitou o almoço e partiu em seguida. Não quis cobrar nada, mas papai pagou-lhe o dia.
Quando voltou, quinze dias depois, o menino não tinha melhorado nada. Mamãe fez tudo como ele mandou e não adiantou. Cavaglieri fez mais um monte de intervenções: massagens, puxões, apertões. Saiu recomendando uma consulta a um médico que atendia, de quinze em quinze dias, em João Neiva.
A consulta ao tal médico resultou na receita de vitaminas injetáveis. Foram dez injeções caras que papai mandou vir de Vitória. Nenhum resultado. Papai poderia levar o menino para Colatina ou Vitória, para médicos melhores, mas não tinha dinheiro. Só depois da colheita do café que ainda demoraria seis meses.
Mais de trinta dias e tudo estava na mesma. O menino na cama, só saía carregado por mamãe ou papai. Foram dados diversos remédios de ervas, foram feitas simpatias e nenhum avanço.
Mamãe estava rezando uma novena na capelinha de Sant’Ana e São Miguel. Todos da Valada do Sapateiro estavam ajudando nas orações pelo menino. Dava dó ver a criança, tão ativa, naquele estado.
Dois meses depois do ocorrido, papai fez um carrinho de madeira, com rodas encapadas por uma borracha de pneu de caminhão. O menino, sentado no carrinho, empurrava-o com um pequeno bastão. Assim ele passava os dias brincando no terreiro.
Mamãe, grávida do segundo filho, passava os dias, triste, chorando e rezando pelos cantos. A perspectiva do filho permanecer aleijado era contundente. Titia, que se julgava culpada pelo acidente, estava também arrasada. Trabalhava pouco e não tinha mais ânimo para nada. Todo dia ia visitar o menino e passava horas cuidando e tentando diverti-lo. Papai consolava as duas e transmitia otimismo. Dizia sempre que o menino ia melhorar e que, melhorando ou não, depois da colheita do café, ia levá-lo para Vitória, num médico bom, para ver o que tinha acontecido.
Nas tardes de calor, papai levava o menino para nadar no poço da cachoeira. Disseram para ele que era bom, que estimulava os movimentos dele. Juntava o útil ao agradável. Mitigava o calor e estimulava os movimentos do filho.
Os remédios e as massagens do Cavaglieri, as injeções do médico de João Neiva, os remédios caseiros e simpatias ensinados à mamãe, as orações da mamãe, da titia, da vovó, do papai e as ladainhas rezadas quase todos os dias na capelinha de Sant’Ana e São Miguel, nada fez o menino melhorar.
Já estava quase completando três meses do acidente, quando, numa noite, na cama, papai disse: “vamos levar o menino domingo na igrejinha de Nossa Senhora da Saúde lá nos Rosalém. Faz três meses que ele não anda. Vamos, só eu e você, com o menino para mostrá-lo à Santa. Rezaremos um terço e voltaremos em seguida. Nossa Senhora da Saúde vai curá-lo.
Mamãe acordou meio assustada com a conversa de papai e perguntou: “o quê foi? Tá sonhando? Amanhã a gente conversa”. Papai continuou falando: “sonhei sim! Apareceu uma moça para mim, uma moça linda, e me pediu que levasse logo o menino à Igrejinha de Nossa Senhora da Saúde”.
Mamãe vivia chamando papai para ir lá, mas papai achava besteira. Dizia: “rezar, a gente reza aqui mesmo, na nossa capelinha. Deus é o mesmo e, quando é da Sua vontade nos atender, não importa onde pedimos”. Mudou de idéia por um sonho. Mamãe ficou animada. Poderia ser um bom presságio.
Naquela semana, havia chovido todos os dias. Os temporais formavam-se ao sul, no início da tarde, e, no final da tarde, o aguaceiro era certo. O domingo amanheceu radiante. Sol forte e um calorão de assar. Papai e mamãe saíram por volta das oito horas, depois de tirar leite e cuidar das criações. Mamãe ia me carregando na barriga, que já se pronunciava no quinto mês de gravidez. Papai carregava o menino na cacunda. O menino ia todo feliz. Ele adorava passear montado na cacunda. Papai disse: “vamos rápido que, com este calorão, o temporal hoje vem cedo”. Mamãe respondeu: “é, e ainda por cima, temos que parar no tio Joanim e no tio Antônio. Vamos parar na ida. Uma paradinha rápida. Na volta, a gente vem direto, sem parar”.
Pararam no Tio Joanim. Tomaram café com latugas. Cecília e tia Mariquinha os receberam, tio Joanim não estava. Pararam no Tio Antônio. Refrescaram-se na bica na entrada da casa e tomaram café com aipim quentinho, molinho, quase papa, cozido em água de sal. Papai suava em bicas, já havia tirado a camisa e sempre com o menino nas costas. Mamãe também muito suada ia subindo os morros com um pouco mais de dificuldade por causa do seu estado.
O Tio Antônio estava em casa e recebeu-os com um sorriso sob seu bigodão enrolado nas pontas. Ele estava de terno branco, ia num batizado na igreja-matriz. Mamãe pedia a todos que rezassem pelo menino.
Quando chegaram à igrejinha, depois de três horas contadas com as paradas, as nuvens grossas já começavam a se formar para o sul, por sobre o Picuã. Papai deixou o menino brincando num monte de areia, debaixo de uma sombra grande, perto da porta.
Entraram e rezaram o terço ajoelhados ao pé da Santa. Não se ouvia nada, só as ave-marias, os padres-nossos e os passarinhos cantando nas árvores próximas. Mamãe puxava a reza e papai respondia. A Santa, com o Menino Jesus no braço esquerdo, o manto azul-turquesa, parecia olhar sorrindo os dois ajoelhados.
Nada os interrompeu, com exceção de um beija-flor que veio visitar umas flores num vaso que fora colocado nos pés da Virgem. Eles interromperam a oração por alguns segundos, se entreolharam e sorriram. Aquele lindo pássaro colorido, com o rabo balançando no ar, fazendo barulho com as asas, poderia ser um sinal de contentamento de Deus. O beija-flor entrou, durante o terço, umas cinco vezes na igrejinha. Papai, de vez em quando, observava o menino brincando lá fora, para ver se tudo estava bem.
Quando terminaram o terço, mamãe pediu que papai trouxesse o menino. Eles rezaram mais algumas ave-marias com o garoto e iam saindo, quando mamãe resolveu voltar. Com o filho no colo, ela foi até a lanterna que ficava queimando no pé da Virgem, pegou um pouco de azeite do reservatório e passou nas duas pernas do menino. Ficou por alguns minutos massageando. Aí, saíram para a penosa viagem de volta.
A menos de um quilômetro de casa, no barranco da estrada, em época de chuvas, havia uma nascente que corria por uma biquinha de bambu. Eles pararam para se refrescarem e beberem. O garoto, da cacunda de papai, pediu para descer. Papai olhou surpreso para mamãe e, imediatamente, arriou o menino ao chão. Ele ficou parado de pé, deu uma cambaleada e caiu de frente, ralando na terra as mãozinhas. Mamãe fez menção de acudi-lo, papai fez sinal para que ela deixasse. Ele se levantou, cambaleou novamente, mas conseguiu se equilibrar. Deu um passinho vacilante e olhou para os dois sorrindo. Em seguida, deu mais uns passinhos e, novamente, estatelou-se no chão. Desta vez, mamãe o acudiu, levantou-o e deu-lhe a mão para apoio. De mão dada, o menino caminhou uns dez metros com a mamãe. Era um milagre. Ele, havia três meses, não dava um passinho. Papai botou-o nas costas e eles foram sorridentes para casa. O temporal já começava a chegar. O vento forte, grossos pingos de chuva e uma escuridão no sul prenunciavam a tempestade.
Chegando perto da subida do morro, papai colocou novamente o menino no chão. Ele deu mais uns passinhos, agora mais firme. Mamãe disse: “vamos logo que a chuva vem forte.” Papai pegou novamente o menino na cacunda e subiram correndo até entrarem em casa.
Quando acabaram de entrar, a chuvarada caiu. Papai botou novamente o menino no chão e ele andou muito. Ora sem apoio, ora apoiado na parede. Parecia que ele estava com saudades de caminhar.
Um relâmpago clareou o dia e um trovão fortíssimo estourou imediatamente. Papai a plenos pulmões gritou: “viva Nossa Senhora da Saúde!” Mamãe, rindo de contentamento, respondeu bem alto: “viva! Viva! Viva!
8 de outubro de 2009 às 08:11
No desenrolar da estória e ainda sem saber que não se tratava de você, pensei: essa pancada na cabeça...explica parte do pigna. também me fez lembrar de minha infância em que ainda bem pequeno chamava o guarda-comida de guaracumida.