Domingo de Ramos

18:23 Postado por Geremias Pignaton

- Não! Domingo é dia de ramos. Finado papai não caçava nesse dia. Não vou! – Disse tio Pedro com veemência.///
- Não é no domingo! É no sábado à noite. Aquelas pacas tão facinhas, facinhas... – Insistia Santim.///
Estávamos de pé na esquina do Constantino. Eu, ainda menino, torcia para a caçada acontecer.///
- Vamos, Pedro – disse papai. - A gente sai com o escurecer, solta cachorro antes das oito. Se não der certo, voltamos antes da meia noite. Se as pacas estiverem morando na furna perto da casa de Santim, antes das dez, a caçada tá pronta!///
- É! Elas tão na grota perto de casa – confirmou Santim.///
Tio Pedro pensou e replicou:///
- A cachorrada vai tirar e subir o Aricanga. Vai tocar a noite toda e elas vão acuar lá pra cima.///
- Se isso acontecer, a gente volta antes e larga os cachorros pra lá – disse papai.///
Tio Pedro concordou, mas não estava muito certo da decisão. Fora influenciado por papai.///
No dia combinado saímos de casa com quatro cachorros amarrados: Pretinha, Fiel, Tostão e Pelé. Dois comigo e dois com papai. O sol ainda brilhava por trás do Morro do Sapateiro. Encontramos tio Pedro e Neguinho, um rapazinho que trabalhava com ele, perto da casa da vovó Joana. Tinham com eles uma cachorrada danada, alguns amarrados, outros soltos. Seguimos até a linha do trem e daí subimos em direção ao Morro de Aricanga. Chegamos à casa de Santim com o anoitecer.///
Amarramos a cachorrada na cerca próxima ao paiol. Entramos e encontramos o velho Santim sentado na cozinha. Tomamos café e ficamos acertando os detalhes da caçada.///
- Sete e meia você e Santim descem para a furna – disse tio Pedro a papai. – Você fica no buraco grande em cima e Santim fecha o buraco pequeno com uma pedra e fica ali. Oito horas eu solto cachorro no alto do valão. Se a paca correr, logo, logo, ela vem para a furna. O menino e Neguinho ficam no pasto, lá no alto, e observam para onde os cachorros vão.///
Soltamos os cachorros no alto do valão. Como sempre foi uma algazarra. Saíram das correntes latindo feito doidos. Alguns minutos depois estavam em silêncio.///
A noite era clara, a lua estava crescente, quase cheia, papai e Santim estavam na furna esperando as pacas. Eu e Neguinho subimos para o pasto e deixamos tio Pedro no valão, gritando com os cachorros:“ Vai Mini-Saiaaaa!” “Veluuuudo!” “Mimoooosa!” Seus gritos ecoavam pelo Aricanga, parecendo urros de fera. De vez em quando, ele pegava um arbusto e balançava, junto com o grito, para incentivar os cachorros.///
Mini-Saia começou dar rastros no valão. Latia grosso e, às vezes, dava três latidos finos; parecia um sino.///
Tio Pedro se animou e gritou forte para a cachorrinha umas três vezes. Mini-Saia, que já tinha a companhia de Mimosa, ia subindo o morro rastreando. Tio Pedro chegou onde estávamos e disse:///
- Puta que o pariu! A cachorrinha vai tirar a paca deste lado e vai lá no Santim. Ele não acerta um tiro!///
A cachorrinha começou a latir sempre fino e mais intensamente. Estava tocando o bicho. Logo a cachorrada se juntou a ela. Era uma algazarra bonita. Cachorros com latidos diversos, uns finos como um sininho, outros grossos, alguns uivando, outros roucos... Parecia que iam pegar o bicho. Tio Pedro, certo que era paca, falou:///
- Criatura! A paca vai direto lá no Santim. Ele vai errar! Se ela, depois, for no Jacó... ainda tá bom! Pior se ela voltar para o morro.///
Tio Pedro foi descendo o morro,
acompanhando a tocada dos cachorros. Eu e Neguinho íamos acompanhando-o, mais de longe. Os cachorros davam umas fechadas que pareciam pegar o bicho, de vez em quando calavam, davam uma perdida e depois fechavam de novo, latindo intensamente.///
Tio Pedro gritava com os cachorros, com papai e com Santim:///
- Seguuura Jaco! Seguuura Santim! Lá vai ela! Mini-Saiaaaaaaaa!///
Os cachorros, uns mais a frente, outros perdidos, mais atrás, iam em direção a furna . Tio Pedro parou, esperando o tiro. Nós paramos também. Ficamos todos calados, arquejando e escutando.///
Pooou! Acendeu o tiro no valão. Os cachorros, aos poucos, pararam de latir. Tio Pedro impaciente tirou o chapéu, coçou a cabeça e disse:///
- Puta que o pariu! Foi Santim... E
errou!///
- Como o senhor sabe? Perguntei.///
- Criatura, você não sabe que ele não acerta um tiro?///
Ouvimos papai gritar no valão:///
- Matou? Matou, Santim?///
Nisso, Pretinha começou a latir fininho, mais acima, no valão.///
Tio Pedro, desesperado, falou:
- Não disse? Lá vai a paca valão acima.///
Os cachorros se juntaram a Pretinha e começaram a tocar valão acima, em direção ao morro de Aricanga. Tio Pedro correu morro acima. Nós não conseguimos acompanhá-lo e o perdemos de vista. A cachorrada subiu o valão e, por uma tirinha de mato entre as terras do Santin e do Checo Lombardi, subiram o morro do Aricanga.///
Papai e Santim chegaram onde estávamos. Papai perguntou:///
- Filho, cadê Pedro?///
- Subiu o morro.///
Santim se explicou:///
- Sacramenta! Errei a paca! Vinha
correndo como um raio!///
Tio Pedro chegou esbaforido do alto do valão:///
- Não consegui cercar a paca, só cerquei
os cachorros, tentei segurar, não consegui, agora eles vão sumir para cima do Morro, Vão lá para a furna do Vergna.///
Era quase dez horas da noite quando os cachorros sumiram por trás do Aricanga. Os cães mais jovens, entre eles Tostão e Pelé, ficaram para trás perdidos no meio do morro e começavam a voltar. Sentamos, observando a paisagem da Valada Maffei iluminada pela lua. Não se ouvia mais os cachorros. Tio Pedro e Santim fumavam cigarros de palha.///
- Perder a paca morta, puta que o pariu!
- disse tio Pedro. – Como foi Santim? Você errou parada? Naquele lugar eu pego de mão.///
- Cramenta! Pedro. Vinha descendo
com os cachorros pegando, eu clareei e atirei rápido.///
- Você devia esperar ela bater na pedra que tapava o buraco da furna. Aí ela pára. – disse papai.///
Às onze e meia da noite todos os cachorros haviam voltado, menos Pretinha, Fiel, Mini-Saia e Mimosa. Tio Pedro queria ir embora antes da meia noite.Esperaríamos mais uns quinze minutos e, depois, iríamos. Não escutávamos mais nada.///
Passados uns dez minutos escutamos a Pretinha que vinha tocando de volta no alto do Aricanga, lá para o lado do Santuzzi. Não demorou, os outros três cachorros apareceram também. Os cães que estavam conosco correram para ajudar.///
- Corre para a furna, Jacó.
A paca vem de volta - ordenou tio Pedro.///
Mal papai correu uns dez metros morro abaixo, parou e gritou para tio Pedro que já começava correr de encontro aos cachorros:///
- Acuou, Pedro! Escuta que a Pretinha tá latindo fundo no buraco.///
Subimos em direção ao encovo.///
Tio Pedro reclamava que já era quase meia noite: Domingo de Ramos. Eles acreditavam que caçar nesse dia era contra os princípios católicos e que poderia aparecer assombração no mato. Eu e Neguinho já estávamos com medo. Papai respeitava a crença do tio Pedro, mas dizia que era bobagem.///
Santim ficou para, no caso da paca correr de novo, cercar na furna.///
Chegamos ao encovo depois de atravessarmos um capoeirão cerrado. Tio Pedro tirou os cães da entrada do buraco e pediu a papai para verificar se tinha algum outro buraco em volta que poderia servir de saída para a paca. Papai tampou, com pedaços de pau que cortou com o facão, dois buracos. Dei minha lanterna para tio Pedro que tinha quebrado a dele.///
- Jacó, Mini-Saia e sua cachorrinha pretinha estão brigando com a paca no buraco. A bicha tá roncando. Escuta! Deve ser um machão de todo tamanho! Fechou os suspiros?///
- Fechei. Meninos, amarrem todos os cachorros que nós vamos cavar e matar essa paca logo!///
Amarramos os cachorros que estavam inquietos. Papai cortou um varão, fez uma ponta para servir de cavadeira. Tio Pedro já cavava com o facão. Papai limpou o mato em volta do buraco, pediu para tio Pedro parar de cavar. Escutou e disse:///
- Tá fácil! Ela tá brigando com as cachorrinhas bem aqui embaixo – falou, batendo com a ponta da cavadeira na terra.///
- Isso! Cava aí que eu vou cavando com o facão, abrindo o buraco por aqui e tentando tirar as cachorrinhas. Tio Pedro falou, cavando freneticamente, na entrada do buraco.///
Não demorou, Tio Pedro tirou as duas cachorrinhas. Amarrei Mini-Saia e fiquei segurando Pretinha no colo. A cachorrinha de papai estava com dois cortes imensos na cara, mas já não sangrava mais./// Os cachorros latiam muito e queriam entrar no buraco. Papai cavava rapidamente com a cavadeira, tentando encontrar o buraco mais à frente, onde, parecia, a paca estava./// Tio Pedro cavando com o facão já chegava próximo de onde papai estava. De repente, papai parou, sacou o facão, cavou um pouco com ele e disse:///
- O buraco tá aqui, Pedro!///
- Cuidado para ela não fugir. Vê se consegue ver a cabeça dela. – Falou tio Pedro.///
- Ela tá aí! – Exclamou Neguinho que clareava o local com a lanterna.///
- Você viu? Perguntou papai.///
- Tá aí! Eu vi a terra mexer! – O negrinho falou, chegando com a lanterna bem pertinho do local.///
- Agora eu vi também ! Cuidado! - Disse papai, afastando o negrinho com o braço. – Arísio, me passa a espingarda.///
Passei-lhe a espingarda de cano de cobre. Ele pegou-a, tirou um pouco de terra do buraco com a mão esquerda e, com a mão direita, atirou com o cano quase encostado no que parecia ser a cabeça da paca. Subiu fumaça.///
- Matou? – Perguntou tio Pedro.///
- Acho que sim. Não dá para ver bem.
Cava por aí, Pedro. Vê se acha as pernas dela.///
Tio Pedro cavou um pouco com o facão e disse:///
- Achei as pernas. Vou puxar.///
Tio Pedro puxou, deu um pulo para trás e gritou:///
- Tá viva! Vai fugir! Você errou, Jacó. Atira de novo!///
- Né possível! Eu encostei o cano na cabeça dela. Só se pegou mal - papai falou pegando da mão do Neguinho a outra espingarda.///
- Tá vendo a cabeça dela ainda? - Tio Pedro espichou o pescoço para olhar o buraco que papai fizera e, com os pés, fechava a entrada principal.///
- Tô. Vou atirar de novo.///
Foi um tiro mais fraco que o anterior, mas levantou muita fumaça. ///A cachorrada, com os tiros, ficou doida, era um barulho infernal. Tio Pedro brigava com os cães:///
- Cala a boca, filho da puta!///
- Matou, pai? – Perguntei já preocupado
com a situação.///
- Acho que sim. Tem sangue misturado com terra aqui, mas não vejo mais a cabeça dela. Pedro, puxa ela por aí pra ver!///
Tio Pedro tirou um pouco de terra com o facão, puxou a bicha pela perna e gritou:///
-Puta que o pariu, Jacó! A paca tá viva ainda. Bem que eu falei para não caçar no Domingo de Ramos!///
Tio Pedro achava que a caçada estava mal assombrada. Papai também estava desconfiado da paca que não queria morrer. O primeiro tiro ele não olhou muito bem, mas o segundo ele caprichou, atirou dentro do ouvido da paca, havia sangue misturado com a terra.///
Neguinho estava trêmulo e branco; eu, então, nem se fala.///
Papai passou a mão no buraco, aproximou-a da lanterna e disse:///
- Pedro, parece mentira, mas tem pedaço do miolo dela junto com a terra! Parece visagem mesmo!///
- Vem aqui, Jacó! Cerca aqui que eu vou ver se vejo ela ali - Disse tio Pedro, resoluto.///
Tio Pedro, com a lanterna numa mão e a sua espingarda grossa de dois canos na outra, abaixou-se para ver o buraco onde a paca estava com a cabeça. Papai cercava no outro lado do buraco onde ela estava com as pernas. Os dois estavam tensos e atentos.///
Tio Pedro cavou um pouco com o facão, falando:///
- Segura aí, heim, Jacó? Quando eu vir a cabeça dela eu atiro.///
- Tá seguro, pode atirar!///
De repente, sem falar mais nada, tio Pedro fez mira com sua espingarda, encostou o cano na terra e atirou. Foi um estrondo, parecia que o morro do Aricanga vinha abaixo.///
- Jacó, atirei dentro da orelha dela. Quero ver agora se ela ainda tá viva! Puxa ela por aí!///
Papai enfiou a mão no buraco, tirou uns punhados de terra e puxou.///
- Sacramenta, Pedro! Ela tá viva! É o capeta! Vou arrastar para fora assim mesmo!///
- Não! Espera que vou atirar com o outro cano, depois você puxa! Nunca vi uma coisa dessa!///
Estávamos apreensivos. Neguinho tremia feito vara verde. Eu tinha o coração batendo na garganta.///
Tio Pedro olhou o buraco, meteu a cabeça bem dentro, enfiou de novo a espingarda e atirou. O tiro foi maior ainda, ficou alguns segundos ecoando pela montanha. Tio Pedro ordenou:///
- Vê aí, Jacó!///
Papai olhou, olhou mais, pegou a perna da bicha e exclamou:///
- Nossa Senhora da Penha! Jesus Cristo! Tá viva ainda, mas eu vou puxar assim mesmo!///
Papai puxou a paca pelas duas pernas, ela veio para fora vivinha, intacta e começou a se contorcer com movimentos rápidos para fugir das mãos de papai. Tio Pedro acudiu e pegou a paca pelo pescoço quando ela já estava livre no ar. Foi um bolo incrível. Tio Pedro e Papai rolando no mato, morro abaixo, tentando segurar a bicha. Serenada a confusão, tio Pedro ergueu a paca pelo pescoço. Papai, com as costas do facão, deu duas fortes pancadas na cabeça dela. A bicha amoleceu, tremeu e morreu.///
- Esta paca não tomou nenhum chumbo! - Disse tio Pedro, largando a paca morta nas mãos de papai. – Puta que o pariu! Deve ter outra no buraco!///
Tio Pedro correu para o buraco, deu umas cavadas com o facão, enfiou a mão e puxou outra paca. Ela estava morta, com a cabeça praticamente desmanchada pelos quatro tiros.///
Eles atiravam na cabeça de uma e puxavam as pernas da outra. ///
Ao verem o que tinha acontecido, deram uma sonora gargalhada. Eu e Neguinho, que estávamos com muito medo, ficamos rindo meio abobalhados.///
Papai falou ainda rindo:///
- Pedro, já estava com medo, pensei em correr.///
- Puta que o pariu, criatura! Se você corresse, eu ia atrás! Vamos embora! Já faz tempo que é Domingo de Ramos!

2 comentários:

  1. Carlos Cacau Furieri disse...

    Genial o conto, Gere!!! Coisa do outro mundo mesmo..kkkkk!!! Fico imaginando Seu Pedro e Tio Jacó caçando. Devia ser uma agonia daquelas. O conto é porreta!! Carlos Cacau Furieri

  2. Fransergio disse...

    Gerê, vou te mandar uma foto do Pierim, já ouvi muitas histórias de caça com ele, uma melhor que a outra. Bem que eu gostaria de ter participado de alguma caçada desta, mesmo não sendo fã de matar animais!