A Batalha dos Caranguejos

08:07 Postado por Geremias Pignaton







A ponte era pequena. Media uns 15 metros de comprimento e só passava um carro por vez. Vista de cima da colina, parecia ainda menor. O riacho também era pequeno, não podia ser considerado um rio, mal chegava a dois metros de largura. Em alguns pontos, a vegetação cobria toda a água e nem parecia que por ali corria um pequeno curso d’água.///
Para baixo da ponte, o riacho formava um poço largo, com águas paradas e cobertas por aguapés com flores violetas. Alguns socós ficavam bicando a água parada à procura de alimentos.///
Sargento Daniel olhava pelo binóculo a movimentação dos cinco soldados mineiros que estavam sobre a ponte. Dois deles portavam fuzis, outro, uma pequena metralhadora e os outros dois, apenas os revólveres dos coldres. ///
- São poucos – disse o sargento, voltando a olhar no binóculo. - Podemos
tomar a ponte com facilidade. Temos que voltar ao povoado e conseguir uma carroça.///
Saíram abaixados para que não fossem vistos, desceram a colina e apanharam os cavalos que estavam amarrados embaixo de um Molembá. Até ao povoado era mais de uma hora de cavalgada.///
Naquele tempo, os mineiros queriam tomar um pedaço do norte do Espírito Santo. Muitos diziam que era uma tentativa de Minas ter mar. ///
O comandante das tropas encarregadas de impedir o avanço mineiro era o Tenente Floriano. Um dia antes, ele dera ordens para que eles retomassem a ponte.///
Era uma ponte estratégica. Um grande território capixaba, ao norte daquele riacho, só poderia ser alcançado de carro por ela. Duas cidadezinhas capixabas, recém- fundadas, estavam isoladas do resto do estado. Ou tomavam a ponte, ou perder-se-ia mais um pedaço do território.///
- Vamos pegar uma carroça emprestada. Somos oito. Dois virão à paisana
guiando a carroça. Os outros seis virão na carroceria escondidos sob uma lona. Quando nos aproximarmos da ponte, tomaremos de assalto os cinco militares mineiros. Não será tão difícil - disse o sargento, confiante, com o cigarro no canto da boca.///
- Por mim atacaríamos agora mesmo. Somos oito contra cinco - falou o
Soldado Teixeira.///
- Não. Tenente Floriano ordenou que tivéssemos cuidado. Ele não quer nenhuma baixa.///
No dia seguinte, ainda escuro, eles retornaram com a carroça. Um grande burro baio a puxava. Soldado Teixeira e um companheiro vinham na frente, um com as rédeas e o outro, de vez em quando, açoitava o animal com o chicote. Os seis, inclusive o sargento, estavam na carroceria, escondidos sob uma lona amarelada. Os soldados mineiros iriam abordá-los pensando tratar-se de agricultores da região e seriam surpreendidos. Não tinha como dar errado.///
Quando o sol começava a despontar por trás dos morros, a carroça apareceu na estrada no alto da colina. Só estavam três soldados mineiros na ponte. O Soldado Teixeira avisou em voz baixa ao sargento que a situação estava melhor do que no dia anterior.///
Chegaram há uns dez metros da ponte e receberam ordens de um dos mineiros:
alto lá! Parem! O quê vocês querem?///
Estavam desconfiados. O Soldado Teixeira respondeu rápido:
- Temos que levar esta carga de farinha para a Vila Vintém.///
Dois dos policiais mineiros se aproximaram com cuidado, com as mãos no cabo do revólver. Um deles foi levantar a lona. Antes que ele chegasse a tocar no pano, o sargento levantou com o revólver em punho e o rendeu. O outro soldado mineiro reagiu e atirou no sargento.///
O que se seguiu foi um tiroteio medonho. Um dos mineiros foi abatido quando tentava recuar para a ponte. O segundo mineiro conseguiu escapar para um abrigo perto do rio. O terceiro mineiro respondeu com rajadas de metralhadora.///
O burro caiu morto, atingido pelos tiros. Os soldados capixabas tombaram a carroça e se abrigaram atrás para responderem ao fogo. Eram, agora, oito contra dois. Mais cedo ou mais tarde os dois mineiros teriam que se render. ///
O sargento foi atingido de raspão no ombro, mas continuava em combate e dando ordens: ///
- Atirem para matar. São dois e não podem fazer frente a oito.
De repente, surge na estrada, no alto da colina do lado mineiro, uns trinta soldados correndo e atirando com fuzis. ///
Os capixabas se entreolharam e o sargento ordenou rápido: vamos fugir enquanto é tempo!///
Correram muito até dobrarem a colina. Os calcanhares batiam nas nucas. O Soldado Pinheiro, gordo e barrigudo, correu mais que os outros. Os tiros de fuzis zuniam nos ouvidos e levantavam terra na encosta da colina. Os mineiros correram atrás dos capixabas por uns duzentos metros, depois desistiram.///
Cessado o tiroteio, os capixabas se reuniram embaixo de uma canela funcho. Estavam ofegantes, os corações estavam saindo pela boca. Ainda olhavam para trás assustados.///
O primeiro a falar foi o sargento:///
- Eles desconfiaram. Acho que havia dias que ninguém passava naquela ponte. O povo tem muito medo dos policiais mineiros.///
- Como está o braço sargento? - Perguntou o Soldado Teixeira.///
- Não foi nada. Foi só de raspão. Nem está mais sangrando. Vamos dar uma
descansada e voltar rápido para o povoado. Se quisermos tomar a ponte temos que pedir reforço ao Tenente Floriano em Nova Venécia.///
Chegaram ao povoado, cansados e estropiados. Foram quinze quilômetros de marcha ininterrupta. Todo mundo acudiu para ver o que havia acontecido. Sargento pediu a um rapazola de sua confiança que fosse até ao telégrafo para avisar ao Tenente Floriano do ocorrido e pedir reforços imediatamente.///
Depois de tomarem banho e comerem, estavam deitados descansando no alojamento de lona, quando o rapazola voltou com o telegrama do Tenente Floriano. ///
Não tinha reforço. Todo o efetivo estava na frente de Barra de São Francisco. Os mineiros estavam atacando e o clima na fronteira era de guerra total. Não havia o que fazer por enquanto.///
Sargento Daniel saiu do alojamento para fumar e ficou pensado numa forma de atacar os mineiros. Não era homem de desistir assim. Andava de um lado para o outro, coçando a cabeça. ///
Soldado Teixeira veio conversar: ///
- Sargento, o que vamos fazer?///
- Não vejo como atacá-los. Eles são mais de trinta, quase quarenta, e nós só
oito. Se deixarmos assim, logo eles virão tomar este povoado.///

- Sem reforço de Nova Venécia, não vejo solução - disse o Soldado Teixeira,
limpando as unhas com a ponta da peixeira.///
Soldado Teixeira, Raimundo Nonato Teixeira, era um mulato arisco. Não era alto, nem baixo,era magrelinho e muito valente. Diziam que tinha muitas mortes nas costas. Soldado da Polícia Militar capixaba e, todos sabiam, também fazia empreitada para matar. Especialista nesse negócio que, naquele tempo, naquela região, era muito comum. Teixeira tinha o apelido de “Pau-Gigante”, não pelo tamanho do membro, mas por ter nascido na cidade de mesmo nome, perto de Vitória. Era descendente de migrantes cearenses que, corridos da seca, se estabeleceram lá.///
- Esses mineiros são os cães! Além de estarem em maioria, não têm medo de nada - disse Sargento Daniel, tirando uma baforada do cigarro. ///
- Que nada! Mineiro tem medo de caranguejo – falou Soldado Teixeira em meio a um acesso de tosse provocado pela fumaça do cigarro do sargento.///
- Como? Medo de quê? De Caranguejo?///
- Isso mesmo! De Caranguejo! Meu pai me contou que, certa vez, dois
pistoleiros de Tumiritinga mataram dois homens em Aimorés e fugiram de trem para se esconderem em Pau Gigante, na casa de parentes. Quando desceram na estação, os funcionários da ferrovia estavam embarcando uns sacos de caranguejos para Colatina. Um dos caranguejos escapou e foi andando pela plataforma na direção dos pistoleiros. Um deles sacou o Revólver e descarregou no bicho. Como estava apavorado, errou os tiros. Os dois saíram correndo para trás da estação. Dois policiais prenderam os pistoleiros que, ainda apavorados, confessaram o crime. Papai contou que um deles disse: “Pode me prender! Eu confesso que sou foragido da polícia mineira! Mas, pelo amor de Deus, me livrem desse bicho horrível”. ///
- Grande ideia! – exclamou o Sargento.-Vamos tomar aquela ponte depois de amanhã. Vou até São Mateus comprar o máximo de caranguejo que eu puder!///
- Ficou doido, Sargento? – Teixeira não entendeu muito, mas já começava a captar a ideia maluca do seu chefe.///
- Amanhã de madrugada, parto para São Mateus no caminhãozinho. Você fica no comando. Contrate aquele caboclinho para ir espionar os mineiros da ponte. Se tudo correr bem, volto à noite, o mais tardar na madrugada. Se Deus quiser, com uns vinte, trinta sacos de caranguejos.///
- Isso é doideira, Sargento!///
- Né não! È nossa única chance! Vou conseguir minha promoção e vou levá-lo
pra cima comigo. Você vai virar cabo! Fique de olho nos mineiros!
Na madrugada o Sargento partiu no caminhãozinho levando um dos soldados para abrir as porteiras e lhe fazer companhia.///
O caminhão era um “fordeco” com carroceria de madeira, não chegava a ser um caminhão, mas também não era uma caminhonete. Dali a São Mateus eram umas seis horas de viagem. Pouco mais de 100 km, mas a estrada era péssima.///
Soldado Teixeira ficou no comando. A ideia de virar cabo lhe agradava. Iria fazer um bom trabalho para provar que merecia, há muito tempo, a promoção. Ordenou ao caboclinho espião que ficasse de olho em toda a movimentação dos mineiros.///
O sargento também lhe ordenara que arranjasse dois meninos para tanger os caranguejos até a ponte. O caboclinho espião indicou dois primos que, com um bom pagamento, poderiam fazer o serviço. Não seria tão difícil. Os meninos nasceram e viveram por vários anos perto de um mangue.///
O Sargento Daniel voltou rápido. Por volta das oito da noite entrou no povoado com o caminhãozinho carregado de sacos de caranguejos. Eram mais de trinta sacos de estopa, sujos da lama preta dos mangues e com as unhas dos bichos saindo espetadas no pano. Alguns dos crustáceos, que conseguiram escapar dos sacos, estavam espalhados por sobre a carroceria.///
O caminhão parou perto do alojamento e o sargento saiu apressado.///
- Soldado Teixeira, como estão as coisas? -Perguntou bebendo água do cantil.///
- Tudo em ordem. O caboclinho está de olho nos mineiros. Eles abriram uma
trincheira do lado de cá da ponte. Ficam sempre uns oito na ponte e os outros ainda estão acampados a uns quinhentos metros, num sítio abandonado perto da estrada – relatou o soldado.///
- E os meninos para levar os caranguejos?///
- O caboclinho arranjou dois primos, de onze e treze anos, que foram criados
perto do mangue.///
- Ótimo! Mais alguma novidade?///
- Consegui três amigos armados com rifles “papo amarelo” para nos ajudar.
São homens bons de tiro e valentes. O soldado falava sorrindo, mostrando seus dentes amarelados.///
- Ótimo, excelente! Vamos reunir os homens, inclusive seus três amigos, para elaborarmos nossa estratégia. Atacaremos amanhã, ao amanhecer. ///
Sargento Daniel estava se sentido Napoleão. Sentado no centro da roda de homens, com uma vara na mão, rabiscando o chão e traçando o ataque da madrugada. Já passava das dez da noite.///
O plano era o seguinte: os três pistoleiros, amigos do Teixeira, iriam atravessar o rio um quilômetro acima da ponte e se posicionarem para barrar a chegada dos homens que viriam socorrer os soldados da trincheira. Quatro homens, comandados pelo sargento, atravessariam o rio junto com os pistoleiros e se aproximariam da ponte pelo lado de cima do rio. Os outros quatro soldados, comandados pelo Soldado Teixeira, atravessariam o rio um quilômetro para baixo da ponte e também se aproximariam.///
Acertaram os relógios, inclusive um dos meninos, e combinaram que, às cinco e meia da manhã, os meninos, empurrando de ré uma carroça cheia de caranguejos, desceriam a colina próxima à ponte. Quando chegassem a uns dez metros da trincheira, eles abririam com uma corda, para não se exporem, a porta traseira da carroça e a virariam para baixo. Os caranguejos iram cair na estrada e os meninos procurariam tangê-los para a ponte. Se tudo corresse bem, seria uma confusão imensa entre os soldados mineiros. Os oito policiais militares capixabas, quatro por cima e quatro por baixo, se aproveitariam, e atacariam os mineiros, já desentrincheirados.///
Acabada a reunião, foram todos transpor os caranguejos do caminhãozinho para a carroça que já tinha uma mula atrelada. Encheram-na com caranguejos soltos, fora dos sacos. Cobriram bem com uma lona bem amarrada de modo a não permitir a fuga dos crustáceos. Fizeram o dispositivo da porta traseira para abrir com a tração da corda na mão de um dos meninos.///
- Vocês dois conseguem empurrar a carroça sem a mula? – perguntou o sargento a um dos meninos.///
- Sim senhor! –respondeu o menino mais velho com segurança.///
- Quando chegarem à colina, desatrelem a mula e empurrem a carroça de
ré. Não fiquem com medo se eles gritarem para vocês. Eles não vão atirar em crianças, e se atirarem, vocês estarão protegidos pela carroça. Procurem chegar bem próximo para abrir a porta. Se fizerem direitinho, vão ganhar um bom dinheiro. Entenderam?///
Os meninos só balançaram a cabeça afirmativamente. Eles estavam felizes de participar daquela operação. Os Capixabas daquela região não estavam satisfeitos com os mineiros. ///
Às cinco e meia em ponto, os dois meninos apareceram na colina com a carroça.
No princípio da descida, os meninos vinham puxando a carroça de frente. Depois, quando o morro ia se aplainando, os meninos manobraram a carroça e a foram empurrando de ré. ///
Os mineiros estranharam. Dois deles chegaram a sair da trincheira e depois, provavelmente com medo de uma emboscada, voltaram aos postos.///
Sargento Daniel observava tudo com seus soldados uns duzentos metros para cima da ponte. Soldado Teixeira estava com seu grupo uns duzentos metros abaixo.///
Quando a carroça chegou a uns vinte metros dos mineiros, um deles gritou: “Parados, moleques, o que vocês querem!? Aí os meninos aceleraram a marcha e quando estavam bem pertinho, elevaram a frente e abriram a porta traseira. Os caranguejos começaram a cair. Caiam aos bolos parecendo que lutavam entre si. Aos poucos foram se espalhando. Eram centenas. ///
Nem precisou tangê-los, parecia que eles eram amestrados. A maioria andou para cima dos mineiros.///
Começou o desespero. Na trincheira havia oito soldados. Os crustáceos chegaram a pouco mais de dois metros e eles começaram a atirar.///
Três deles saíram do abrigo e recuaram até a ponte. Todos atiraram até descarregar a arma da cintura. Alguns já começavam a usar fuzis. ///
Quando os caranguejos já estavam entrando na trincheira, todos os mineiros saíram apavorados. Os oito ficaram na ponte atirando nos bichos com os fuzis.///
Os capixabas atacaram. Os dois grupos apareceram de surpresa pelos flancos atirando. Os pobres mineiros só tinham duas alternativas. Ou voltavam para a trincheira, para o meio dos caranguejos, ou fugiam. O tiroteio era intenso.///
Começou também o tiroteio atrás da colina do lado mineiro. Os amigos do Teixeira, com as “papo amarelo”, entraram em ação e impediram a aproximação do reforço.///
Os mineiros da ponte, sem alternativa melhor, com medo dos caranguejos e com a aproximação dos capixabas, correram para a colina e sumiram. A ponte estava tomada. ///
Um dos capixabas tomou um tiro na perna e, felizmente, estava bem. Dois mineiros tombaram mortos. ///
Os meninos, escondidos no alto da colina, riam de rolar pelo chão.///
Sargento Daniel deu ordem para que cinco dos homens fossem ajudar os amigos do Teixeira.///
A ponte ficou guarnecida pelos outros soldados.///
Os mineiros recuaram e nunca mais voltaram.///
Dias depois, o Governador de Minas colocou um protesto nos jornais de todo o país dizendo que os capixabas usaram armas biológicas contra a polícia mineira.///
Ele tinha razão. Realmente foi arma biológica. Não foi bactéria, nem foi vírus, foram crustáceos, gigantes e terríveis para os mineiros, nutritivos e saborosos para os capixabas.///



PS - Esta história foi inspiradas nas gozações que eu e meus irmãos, Arísio e Galo, fazíamos com os amigos mineiros de Nova Era, no tempo que lá morávamos. Não tenho nada contra os queridos mineiros. Meu sogro – meu pai substituto- é mineiro e minha falecida sogra também. Portanto, minha família, esposa e filhos, são mineiros. Adoro Minas e costumo dizer que se não fosse capixaba, escolheria Minas para ser minha terra.

1 comentários:

  1. Carlos Cacau Furieri disse...

    Ge, muito bom o conto!!! Eu já conheci mineiro que deu tiro em carangueijo. Foi lá em Nova Almeida. Não é conto, é sério. Estava entupido da mardita. Vida que segue. Carlos Cacau Furieri