O Parto

10:20 Postado por Geremias Pignaton

No escuro, mal via a traseira do burro castanho que ia a sua frente. O rapazola conhecia bem aquela estrada pedregosa e acidentada na subida do Morro de Aricanga. Algumas vezes, quando o burro montado pelo rapazola se distanciava, o doutor gritava para ele ir mais devagar.

Os relâmpagos clareavam a estrada e eram seguidos por grandes trovões. O vento forte e fresco denunciava a presença vizinha da chuva. Alguns pingos esparsos começavam a cair.

O doutor pediu que parassem para vestir a capa. O rapazola, preocupado com a irmã, apressava o doutor. Sem apear e sem se incomodar com a chuva, disse: “vamos rápido, não sei se ainda a encontraremos viva”.

O médico respondeu: “calma, tenho de chegar lá vivo e em condições de fazer alguma coisa. Caso contrário, de que adianta a pressa? Era homem experiente, vivido, conhecimentos muito maiores do que os dos livros. Conhecia aquela estrada e sabia dos riscos de cavalgarem com velocidade, principalmente à noite com tempo chuvoso.

Doutor Antônio Barroso era médico e fazendeiro na cidadezinha. Podia levar uma vida pacata, mas tinha bom coração e, diferente de muitos médicos mercenários, fazia valer o Juramento de Hipócrates, atendia a todos, a qualquer hora e lugar, independente de pagamento.

Num domingo à noite, seu descanso, com prenuncio de temporal, o rapazola chegou a sua Fazenda da Barragem pedindo para acudir sua irmã que estava há dois dias em trabalho de parto, no alto do Aricanga. A criança estava sentada e a parteira não conseguia virá-la.

A casa de pau-a-pique ficava no alto de um despenhadeiro na escarpa oriental do Aricanga. De longe os cavaleiros podiam ver a luz das lamparinas. O rapazola, ansioso, adiantou-se em galope.

Doutor Barroso chegou, apeou, cumprimentou o pai da moça, a mãe e o marido. Amarrou o burro preto numa estaca no meio do terreiro, tirou a capa ao mesmo tempo em que entrava na cozinha.

A casa era a mais simples que podia existir. Pau-a- pique, piso de terra batida, telhado de pequenas táboas de braúna, portas e janelas rústicas de madeira. O fogão era de barro branco, moldado sobre umas chapas metálicas, equilibrado sobre cinco estacas fincadas no solo.

A família da parturiente era descendente de índios. Naquela montanha havia várias famílias de índios que migraram de Santa Cruz.

O Rapazola levou o burro do médico para o coberto do quitungo e retirou as duas maletas de equipamento.

Doutor, depois do cafezinho, se lavou rapidamente numa bacia e conversou com a parteira.

A parteira era uma índia velha que atendia a todos os partos daquela montanha. Era pequenininha, magrinha, mas tinha uma aparência rude, forte e decidida, características muito importantes numa parteira. Ela disse: “doutor, não sei se o neném ainda está vivo. A moça está cansada, acho que não agüenta mais".

“Vamos rápido, pegue água quente no fogão, despeje numa bacia! Lá dentro conversaremos sobre o problema. Peça a todos que esperem rezando, farei tudo que for possível para salvar os dois, mãe e filho”. Doutor falou apanhando as maletas da mão do rapazola.

A moça estava deitada, com olhos fechados, numa cama rústica com colchão recheado de capim seco. O lençol estava sujo de sangue. Doutor pôs as malas sobre uma mesinha de troncos de camará no pé da cama, checou o equipamento, fez a assepsia possível com um litro de álcool. Viu que o bebê já estava com uma perninha roxa de fora. Naquela altura, dificilmente estaria vivo. Acordou a moça chamando-a baixinho. Ela abriu os olhos e Doutor disse: “fique tranqüila, eu sou Doutor Barroso e vim ajudar você”.

Ela arregalou os olhos e falou com uma força quase desumana: “graças a Deus, o senhor chegou para salvar meu filhinho”.

“Agora você descanse mais um pouquinho que vai precisar de muita força”. Doutor falou mais tranqüilo ainda, enquanto preparava uma injeção.

Quando a parteira entrou com uma bacia de água quente, Doutor estava aplicando a injeção. Era um remédio para causar contrações. Doutor disse para a parteira pegar a mão da moça e não deixá-la ver o que ele ia fazer. Naquele momento o médico já havia examinado o local e nem quis auscultar o coração do bebezinho. Provavelmente ele já estava morto, mas, se estivesse ainda vivo, era melhor não saber.

Fora do quarto, na cozinha, o marido, o pai, a mãe e o rapazola aguardavam ansiosos e aflitos. Os gritos de dor da moça ecoavam pelas pedras do morro e pareciam abafar o barulho dos trovões e da chuva que caía. Relâmpagos clareavam o interior da cozinha, entrando pelas gretas da janela, da porta e das tábuas do teto. Todos ansiavam por ouvir um choro de bebê.

O pai da moça saía no escuro com uma lamparina ia ao quitungo pegar beijus para comer com café. Comer aqueles pedaços de beijus velhos, que exigiam uma árdua mastigação, era um alívio para a ansiedade.

Todos sabiam que a moça estava em boas mãos. A velha parteira era experiente e o Doutor era o melhor recurso que tinham naquele fim de mundo. Tiveram sorte que o rapazola o encontrou em casa naquele dia.

A parteira deu uma saída a pedido do doutor para tranqüilizar a família. Disse que tudo estava indo bem e, se Deus quisesse, bem antes do amanhecer, o doutor acabaria. Não sabia se o neném nasceria, mas a moça iria se salvar.

A informação da parteira surtiu efeito contrário. A mãe começou a chorar de desespero. Não sabia que a filha corria risco de vida e, pelo jeito, o neto, seu primeiro netinho, já não tinha esperanças.

O temporal havia passado, umas estrelas e a lua minguante apareciam no céu. O marido dormia num tosco banco de madeira. O pai da moça fervia água para fazer um café novo. Dentro de pouco tempo o Doutor sairia. Já fazia mais de hora que não se escutava nada no quarto. A mãe estava no quitungo esquentando uns beijus para servir quando o médico saísse. O rapazola não aguentou e foi para a cama dormir.

O doutor saiu do quarto junto à parteira segurando um saco ensangüentado dentro de uma bacia . Disse à parteira para enterrar aquele saco logo, depois que ele fosse embora. Reuniu a família, inclusive tirando o rapazola da cama, e falou: “o trabalho está encerrado, a moça perdeu muito sangue, está fraca, precisa ficar em repouso por muitos dias e tem que fazer resguardo. A comida tem que ser leve, principalmente nos primeiros dias. Uma canjinha rala na primeira semana e frutas. Deve também beber muita água, mesmo quando não tiver sede. Se por acaso tiver febre, vocês mandem o rapazola me avisar lá na fazenda. Não esperem, avisem-me imediatamente”.

Doutor tomou o café com um prazer imenso. Comeu também dois beijus, estava exausto e faminto e ainda tinha uma grande cavalgada morro abaixo em terreno molhado.

O dia estava raiando. Já se podia ver, lá longe, pros lados de Sauassu, sobre o oceano, o clarão do sol que  se aproximava.

A parteira arriou a bacia com o conteúdo do parto sobre o banco. Todos olharam para o saco sangrado dentro da bacia, se entreolharam, mas, por instantes, ninguém perguntou nada. Depois de alguns minutos, o pai da moça olhou fixo para o rosto do doutor, desviou os olhos rapidamente para o saco e perguntou com a voz embargada pela emoção e por um pigarro do cigarro de palha que fumava. “Doutor, e o neném?”

Doutor levantou-se do banco e disse: “era um menino, um meninão forte e robusto. Infelizmente estava sentado. Quando cheguei, ele já estava morto e com uma perna para fora. Não pude fazer nada”.

A mãe da moça se adiantou e quis abrir o saco. Doutor a impediu com um movimento brusco. “Não!” Disse com energia. “Melhor ninguém ver. Aí dentro não tem mais uma criança. Tive que retirá-lo aos pedaços. Precisava salvar a mãe. Graças a Deus ela é jovem e forte”.

Ninguém conseguiu segurar as lágrimas. O marido da moça, o pai da criança, por incrível que pareça, foi quem ficou mais calmo. Disse: “vamos enterrar perto do quitungo. Vou fazer uma cruz de madeira para fincar. Não se preocupem, minha mulher ainda é jovem e nós teremos muitos filhos. Né Doutor?

O doutor respondeu com um sorriso e pegou o burro preto que estava amarrado no meio do terreiro.

O pai da moça trouxe um saco com dois leitõezinhos. O médico não quis aceitar. Dois leitões eram um pagamento muito alto para aqueles pobres camponeses.

Diante da insistência do homem, levou. Partiu no burro preto com o saco na frente da sela, um leitãozinho de cada lado.

Quando o médico chegou ao alto da montanha, o dia estava raiando. Pode ver, de um lado, o povoado de Sauassu e, do outro, a cidade de Ibiraçu. Ia fazer um belo dia. Deu uma paradinha na capelinha de Nossa Senhora da Penha que havia no cume. Rezou de cabeça baixa, sem desmontar, botou o chapéu e desceu para o lado da cidade. Os dois porquinhos gritavam toda vez que o burro sacolejava forte.

3 comentários:

  1. Jacson Bittencourt disse...

    Neste conto o Geremias faz com que o leitor que nunca viveu no interior "entre" na cena com a descrição de locais, costumes e sentimentos.
    Aqueles que conhecem, ou vivenciaram, a realidade do interior brasileiro certamente se identificaram com esta obra, que, apesar de dramática, se transforma numa homenagem ao povo simples, sofrido e aos verdadeiros Doutores de outrora.
    Jacson Bittencourt Queiroz - brasiliense que conheceu Ibiraçu.

  2. Carol disse...

    Gerê,

    Primeiro, gostaria de parabenizá-lo pelo blog. Está muito legal! Segundo, gostaria de comentar que me emocionei muito com o caso do Dr. Barroso. Mande beijos para os meninos e para Jaque.

  3. Samuca disse...

    Sempre gostei muito dos contos de Gerê. Sempre os leio várias vezes no Ibirinha e agora no seu blog a estréia foi com um dose cavalar de autenticidade que nos leva a viver a situação e sentir um aperto no peito quando vislumbramos como era difícil a situação naqueles tempos. Antes, por falta de recursos; hoje por incompetência dos governantes que querem reimplantar o regime suserano-vassalo que apenas alimentam o ego dos algozes do povo. Parabéns Gerê!!!