A Meningite

16:04 Postado por Geremias Pignaton

Espirravam no fundo da sala e, a essa altura, já imaginava milhares de gotículas de saliva, impregnadas de muco, flutuando no ar, com os cocos metidos no meio da secreção, ameaçando a todos. O professor de ciências, o Maioli, disse que essa era a forma de contágio daquela terrível doença. A bactéria entrava nas vias aéreas, alojava-se na garganta e passava para as meninges.

Dor de cabeça, vómito em jato, febre, rigidez na nuca, eu, como todos, estava assustado. Tinha vontade de não respirar, parar de sorver o ar impuro, parar de engolir as gotículas catarrentas que me ameaçavam com aquelas porcariazinhas.

Em 1973 grassava no país a meningite, como sempre grassou a corrupção. Ouvíamos notícia de mortos para todos os lados. Crianças, adultos, velhos, todos eram vitimados pelo grande mal.

Em Ibiraçu não havia ainda nenhum caso confirmado mas ouvíamos dizer de mortos em toda a redondeza, principalmente em Vitória e Colatina, onde foram registrados cem casos em menos de uma semana. As crianças eram as principais vítimas. O único caso de pessoa conhecida era a de um sobrinho de Cordélia, professora de educação física, que já havia morado na cidade. Estava, há dias, internado no CTI de um hospital de Vitória.

As mães, desesperadas, costuravam um patuá de pano, uma espécie de travesseirinho recheado de cânfora e ervas que quase todos ostentavam pendurado no pescoço. Poucos acreditavam naquilo, mas era a única esperança que tínhamos. Qualquer febre, vómito ou dor de cabeça era um sinal para correr ao hospital, para João Neiva ou Aracruz. Em Ibiraçu não tínhamos assistência médica, só Doutor Mauro atendia no Posto de Saúde.

Boatos circulavam por toda a cidade. Possíveis casos aconteciam a toda hora. Pessoas morriam, eram internadas, tinham parentes próximos doentes nas cidades vizinhas, tudo na língua do povo assustado.

Não era mais boato. Eu e mamãe estávamos no portão. Marilda, minha prima, veio correndo e chorando.

- Que foi minha filha? Perguntou mamãe.
- Oberdan. Ele tá passando mal desde a manhã. Foi levado agora
ao hospital. Tão achando que é meningite.
- Calma, menina. Pode não ser nada, pode ser outro problema.
Vai para casa e fique tranquila. Nada aconteceu ainda – mamãe falou com a experiência de quem já era calejada pelas mazelas da vida.

Enquanto Marilda falava, um frio corria pela minha espinha. No dia anterior, eu e Oberdan brincamos a manhã inteira. Fomos juntos, com uma turma, à mata do Aquiles, balançar num cipó que tínhamos por lá. Procurei lembrar o que tinha acontecido. Quantos espirros ele deu? Quantas vezes tossiu? Lembrei que, quando voltávamos, depois de comermos uma jaca, ele reclamou que estava com dor de cabeça. Meu pensamento se fixou no momento que comíamos a jaca. Vários meninos pegando os favos da jaca mole, aberta. Oberdan, um dos mais sacanas, pegava aos punhados, com as duas mãos. Deve ter deixado várias gotículas de saliva nos demais favos.

Enquanto pensava, já começava a me sentir mal. Mamãe percebeu e me tranqüilizou:
- Vamos entrar. Não se preocupe, Oberdan vai melhorar e ainda vai brincar muito com você.


Naquela noite, demorei a pegar no sono. Imaginava as bactérias reproduzindo, infectando minha garganta e depois passando para as meninges. Eram bichinhos vorazes que comiam todas as células em volta. Via mastigando pedacinhos do meu cérebro. Minha cabeça latejava, doía um pouco, aquela dorzinha quase imperceptível, bem no fundo. Pegava o patuá pendurado no meu pescoço e cheirava fundo. Levantei-me para tomar água. Mamãe estranhou e foi ver o que estava acontecendo. Tenho certeza que ela também estava preocupada. Procurava não demonstrar e me passar tranquilidade.

- Que foi, meu filho? Tá sentindo alguma coisa? Você nunca
levanta no meio da noite.
- Nada. Só sede e um pouquinho de dor de cabeça.
- Você tá preocupado com o Oberdan. Né não? – Mamãe sabia do que falava.


Fui para a cama e finalmente adormeci. Acordei pela manhã e recebi a trágica notícia. Oberdan morrera na madrugada no hospital de João Neiva. Foi a primeira vítima da meningite na nossa cidade. Fiquei estarrecido. Não tinha mais disposição para nada. Chorava escondido pelos cantos e ma- mãe, mesmo com toda experiência, não tinha palavras para me consolar. Além da perda do amigo, tinha o medo do contágio. Meus soluços eram permeados de pontadas na cabeça.

Oberdan era três anos mais velho que eu. Já não era mais criança, tinha uns quatorze anos e fazia enorme sucesso com as meninas. Era um bom beque no timinho do bairro e um rapazinho muito espirituoso. Era amigo de todos e estava sempre no meio de nossas brincadeiras.

A casa do Oberdan ficava a uns cinquenta metros da minha. O movimento lá era intenso. Os vizinhos entravam e saíam para prestar solidariedade à família. Os Ferraz não eram da cidade. O pai do Oberdan veio com esposa e filhos para trabalhar no escritório da Acesita, que comprava carvão vegetal para a siderúrgica mineira.

Da varanda de minha casa eu observava o movimento. Viam-se claramente as pessoas chorando. Gente entrava e saía da casa constantemente. Parecia que estavam com medo de contágio.

Minha mãe me perguntou:
- Filho, você quer ir ao enterro?
- A que hora será? Perguntei também, entre soluços.
Ela me abraçou forte e disse:
- Será às cinco. Ninguém pode abrir o caixão. Está lacrado, os
médicos temem o contágio. Acho melhor você não ir. Não vai adiantar mesmo.
Assenti com um leve meneio de cabeça e perguntei, ainda, entre soluços:
- A senhora vai?
- Vou sim. Digo para todos que pedi para você não ir. Digo
que você estava muito emocionado e não tinha condições. Fique com a
imagem do seu amigo vivo.

Fiquei acompanhando o deslocamento da mamãe até a casa do Oberdan. Era muito grande a movimentação. Daí a pouco o enterro saiu. Uma caminhonete levando o caixão com a multidão atrás passou em frente da minha casa. As mulheres rezavam e cantavam. Mamãe puxava as ave-marias e os cânticos.

Fiquei ali na varanda parado e chorando muito até não ouvir mais nada do enterro que dobrou a Curva do Ville. Entrei e liguei a televisão. No único canal que pegava na cidade estava passando um episódio do seriado “O Túnel do tempo”. Nesse seriado, uma dupla de aventureiros eram arremessados dum túnel para aventuras no passado e no futuro. O episódio contava uma aventura na Europa medieval na época da grande peste. Eu adorava esse seriado, mas não consegui ver aquele episódio. Tudo me fazia lembrar de Oberdan, da tragédia de sua morte e do surto de meningite.

Os dias que se seguiram à morte de Oberdan foram de muita angústia. A bactéria estava no ar em nossa volta e poderia já estar instalada em qualquer um de nós da vizinhança. Qualquer espirro já era sinal de preocupação. Eu, bom aluno, já havia aprendido que o período de incubação do mal era de uma a duas semanas. Nosso bairro, que era movimentado pelas crianças brincando, virou um local deserto. Muitos sequer iam para a escola. Mamãe trouxe da biblioteca um volume de uma obra intitulada “ Três Escoteiros de Férias no Rio Aquidauana”. Ela sabia que eu gostava daquele tipo de aventura e isso me faria esquecer a tragédia da meningite.

Passou o período de incubação e, graças a Deus, ninguém mais ficou doente. A epidemia continuava e muitos casos eram registrados nas cidades vizinhas. Colatina, conforme a notícia, era a cidade mais afetada.

A vacina seria a salvação. O governo, a ditadura militar, não providenciava a vacina. Milhares e milhares de vítimas por todo o país. Seu Gastão, velho comunista, maestro da bandinha da cidade e que estava, podemos dizer, escondido dos militares na cidadezinha pacata, dizia-me em voz baixa e olhando para os lados:
- Se os militares deixassem, Fidel já teria nos mandado vacinas.
Eles são muito cabeça-dura. Nestas horas, não pode haver ideologia.

Eu não entendia muito aquela conversa, mas sabia que tinha alguma coisa com a doutrina comunista. O velho Gastão, certa vez, havia confessado para mim sua ideologia e tinha me feito ler o “Manifesto Comunista”. Quase não entendi nada, mas simpatizei com a ideia da igualdade social, da falta de rico e pobre, da justiça social.

Depois de um ano da morte de Oberdan, a vacina chegou. Primeiro em Vila Velha e Vitória. Chegava-nos a notícia de que estavam vacinando todos. Muitos se dirigiam para lá para se vacinar. Pessoas vindas de todo o Estado formavam filas quilométricas. Minha irmã e meu irmão Arísio me levaram para vacinar em Vila Velha. Ficamos umas seis horas na fila. A vacina demorava uma semana para fazer efeito. Quando passou esse período eu fiquei aliviado.

Meses depois, a vacinação chegou a Ibiraçu e a todo o país. Logo, o que era uma epidemia passou a ser uma endemia. Como um dia, quem sabe, possa acontecer com a corrupção.

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