Procissão

16:06 Postado por Geremias Pignaton

Queridos irmãos, minhas lembranças daquela época não são lá essas coisas. Eu era pequenininha, por volta dos cinco anos, talvez uns sete, e me recordo como se fosse um sonho.
Corriam os anos trinta, metade da década, mais provável mil novecentos e trinta e cinco, Getúlio era o presidente e o país passava por conturbados tempos na política.
Naquele ano, a seca estava terrível. Mesmo agora, depois de toda a degradação ambiental, depois de todo o desmatamento, depois da morte dos rios, nunca mais se teve notícia de uma seca tão forte.
Foram mais de cinco meses sem chuva. Se fosse hoje, a meteorologia poria culpa em algum fenômeno conhecido, El Niño ou La Niña, por exemplo. Naquela época, ninguém tinha conhecimento disso.
Os pastos secaram, o gado morria de sede e de fome. O Rio Taquarassu, que era grande, não esta vala de esgoto como é hoje, havia se transformado num filete. O Sapateiro e o Perobas secaram completamente. Raras eram as árvores das matas que ainda ostentavam algum verde. Muitas propriedades não tinham mais água sequer para beber.
Os agricultores, a imensa maioria dos habitantes, começavam a enfrentar a fome. Cinco meses sem chuva comprometiam toda a safra daquele ano. Os paióis se esvaziavam, acabava milho para a polenta e para alimentar os animais. Faltava o leite, o feijão, até a mandioca não existia mais. O café, que se convertia em dinheiro para o pequeno colono, nada produziu.
Dava pena ver a paisagem, tudo seco, praticamente sem verde. O sol nascia e se punha sem uma nuvem no céu. O calorão era insuportável.
Começava a bater o desespero na população. Alguns, em vão, procuravam ajuda na prefeitura. Os políticos, como hoje em dia, prometiam fazer alguma coisa.
O povo, quase todo colonos italianos, começou a recorrer aos santos católicos. Os poucos negros existentes na região recorriam aos seus orixás e a São Benedito.
Alguém teve a idéia de organizar uma procissão. Sairiam do centro da cidade, da praça da matriz e iriam em oração até a capelinha de Nossa Senhora da Saúde, no pé do Morro de Aricanga.
A idéia foi prontamente aceita. Nossa Senhora da Saúde era o socorro médico de todos, poderia também resolver o problema da seca. Afinal, ninguém pode ter saúde se não comer e beber.
No dia marcado, às 8 horas da manhã, o povo reuniu-se na frente da Igreja Matriz. Veio gente de toda a região, do Monte Seco, de Pendanga, de Piabas, de Rio da Prata. Formou-se uma multidão.
No céu não havia uma nuvem. O calorão era insuportável. Algumas pessoas portavam cantis improvisados porque não havia mais nenhuma fonte com água no trajeto.
A procissão passou por sobre o morro da propriedade do Antônio Furieri e desceu na propriedade dos Rosalém, onde está a capelinha de Nossa Senhora da Saúde. Passou por uma estradinha de pedestre, uma picada dentro da mata.
O povo, como costume da época, ia em duas filas indianas paralelas. Uma era formada por mulheres e a outra por homens. Onde a estrada era muito estreita, as filas se juntavam. Todos acompanhavam as rezas e cânticos.
Lembro-me dos homens cantando. Eles tinham um coral na igreja. Esse coro também acompanhava as procissões e os enterros pelas ruas da cidade. Eram vozeirões graves. Cantavam em latim ou em italiano.
Eles iam cantando pelo meio do mato, serpenteando junto da procissão pelas curvas da estradinha. Cantavam nas descidas ou nos planos, quando a estrada era em subida, eles iam calados, apenas respirando com maior freqüência.
Ressoava pelas matas o belo canto:

“Perdono mio Dio, perdono, perdono
Perdono mio Dio, perdono, pietá!”

Eu, menininha pena saída das fraldas, ouvia o eco das vozes dos homens pelas matas e achava que eram os anjos que respondiam:

“Perdono mio Dio, perdono, perdono
Perdono mio Dio, perdono, pietà!”

Chegando à igrejinha, aos pés de Nossa Senhora, rezou-se a ladainha. Todos com muita fé, pedindo à santa por chuva.
O retorno do povo, por volta das onze horas da manhã, foi desorganizado. Cada qual seguiu seu caminho. Nós retornamos pelos fundos de nossa propriedade.
Papai vinha observando o tempo. Não tinha ainda uma nuvem no céu. Naquele dia, o sol parecia mais forte. O vento, que dias antes soprava forte, estava morto, completamente parado.
Chegamos em casa para o almoço. Depois ficamos nos afazeres domésticos. Ninguém foi para a roça, não havia o que fazer, a terra estava preparada para plantar feijão e estávamos aguardando a chuva que não vinha.
Por volta das duas da tarde, papai viu a pontinha de uma nuvem por trás do Morro das Freiras. Sentado na varanda, fumando seu cachimbo de jequitibá, ele ficou com os olhos atentos àquele sinalzinho de chuva.
A nuvem foi subindo e parecia mais grossa. Às três horas, ela estava no meio do céu e com o pé enegrecido. Por volta das quatro, havia um negrume mais significativo. Cinco da tarde ouvia-se trovões distantes.
Uma ventania atingiu toda região prenunciando o temporal.
Oito horas da noite, começou a chover. No início, eram pingos grossos e esparsos, depois, o tempo fechou.
Dormimos felizes, ouvindo o barulho daquela chuvarada.
Só parou de chover, no outro dia, depois do almoço. Os rios estavam cheios. O Taquarassu quase atingiu a pinguela mais baixa que dava acesso à parte de cima de nossas terras.
À tarde, todos saímos para plantar o feijão.
Daí para frente, naquele e nos anos seguintes, o tempo correu normalmente e a seca acabou.
Até os mais incrédulos reconheceram a natureza milagrosa daquelas chuvas.
Desde então, essa procissão da chuva é realizada todo ano para agradecer a Nossa Senhora da Saúde e para pedir que o tempo corra bem.

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