Sant'Ana
01:00 Postado por Geremias Pignaton
Era um trabalho árduo. As árvores, jequitibás, currubixás, bicuíbas, farinhas-secas, joão-moles, parajus, macanaíbas, cedros, vinháticos, pequiás, milhos-torrados, jucutupês, ipês, copaíbas, sangue-de-gatos, angelins, eram derrubadas com machados, serradas com traçadores manuais e arrastadas por bois para os tombadores, locais onde os caminhões pegavam as toras.
Na região de Ibiraçu, meio norte capixaba, a floresta atlântica era rica em madeira, mas o relevo era impróprio para a exploração. No terreno acidentado, cheio de granito, a abertura de estradas só era possível com o uso de muita dinamite.
Papai não tinha trator, abria estradas a enxadão e rachando as pedras com bombas de dinamite. Assim, a atividade deixava pouco lucro. Só se via um pouco mais de dinheiro quando, com muita sorte, se achava um jacarandá ou uma massataíba, madeiras raras e caras.
Nas minhas férias escolares, adorava ir para o mato “trabalhar” com papai. Mamãe preparava nossas marmitas bem cedinho e nós saíamos a pé para as matas. Ora íamos para o Aricanga, ora para o Picuã, para o Morro do Sapateiro, Monte Negro, Córrego das Freiras, Taquarassu, dependia de onde o papai estava explorando a mata.
Eu o ajudava fazendo mandados, transportando ferramentas, pegando água para beber, tangendo os bois de canga, serviços leves que um menino podia fazer. Entretanto, a maior parte do tempo, eu ficava me divertindo, caçando com a seta e com os cachorros, tomando banho nos rios e cachoeiras e observando os animais da mata, meu passatempo predileto.
Adorava quando havia a necessidade do uso das dinamites. As explosões me divertiam. O estampido ensurdecedor e os pedaços de pedras voando pelos ares faziam meu espírito juvenil viajar por aventuras imaginárias.
Papai me ensinava a trabalhar com os artefatos explosivos. Ajudava-o a fazer os buracos nas pedras. Usávamos um “ponção” – um pedaço roliço de aço com uma ponta afiada-, batíamos com a ponta na pedra, usando uma marreta pesada. Eu ajudava segurando, suspendendo e abaixando o “ponção”. Papai batia com a marreta.
Depois de prontos os buracos , profundos uns cinqüenta centímetros, botávamos a banana de dinamite dentro de cada um com espoleta e pavio, enchíamos os buracos com areia seca socada. Aí, era pôr fogo, gritar o alerta, correr para longe e observar a explosão.
Quando o tiro era bom, nós comemorávamos felizes. Quando era ruim, lamentávamos e preparávamos logo uma nova explosão.
Assim, muitas estradas até hoje existentes na região foram abertas. Muito suor, fadiga e dinamites. Assim também, muitas árvores da esplendorosa Mata Atlântica vieram abaixo.
Justiça, entretanto, seja feita: nunca vi meu pai botar a mata toda abaixo. Ele só derrubava as árvores maduras, deixando o resto da mata intacta, ou, no máximo, com toda condição de se regenerar.
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As luzes do poste de madeira acenderam. Pareciam brasas iluminando, mal e porcamente, a noite que começava a cair.
Nós estávamos, depois da sagrada pelada vespertina, sentados perto do poste. Eu e minha turma do Bairro São Cristóvão: os Polacos, Roque Surlo, Papagaio, os meninos da Mercedes, Bebete, Celso e Oberdã.
A conversa fluía aos borbotões. Começou com os comentários da pelada: um comentava as caneladas, outro os dribles sensacionais, outro os gols perdidos, outro o golaço... Foi para o filme do Daniel Boone da TV e culminou com o convite de alguém para irmos à festa de Santo Antônio no Maffei.
Alguém comentou: todo bairro e valada têm uma festa junina, só nós, aqui no São Cristóvão, não temos. Aqui ninguém se interessa!
Eu falei: “não temos porque não queremos. Já pensei nisso. Porque não fazemos uma?”
O Bebete disse: dá tempo ainda para esse ano.
“Porque não fazemos no dia de Sant’Ana? Vinte e seis de julho. Dá tempo! Sant’Ana é a padroeira daquela igrejinha lá na Cascata, tem a ver conosco”. Falei, imaginando a festinha nossa no terreno vazio ao lado do Posto do Antero Bragatto.
A turma gostou e foram acrescentando novas idéias: as meninas fariam a decoração com bandeirolas e lanternas. Traríamos lenha da mata do Aquiles para a fogueira. Traríamos também um tronco de pendaíba para o pau-de-sebo. Faríamos uma vaquinha para o prêmio.
O dia de Sant’Ana ficou muito bom. Era em julho, bem distante das outras festas e com tempo para divulgarmos e convidarmos amigos de outros bairros.
De toda a preparação da festa, o mais marcante e emocionante foi o pau-de-sebo. Eu e mais uns quinze garotos subimos o morro do Odérico Sarcinelli e entramos na mata do Aquiles Modenesi. Procuramos uma árvore de pendaíba retinha e de bom porte que desse para arrastarmos. Achamos a árvore desejada, derrubamos a machadadas. Paulinho da Mercedes era o nosso operador de machado. Tiramos a casca para que ela deslizasse melhor, amarramos uma corda na cabeça do tronco e arrastamos. Enquanto estava na mata, o trabalho foi árduo. O tronco embaraçava nos cipós e nas árvores. Quando saímos no pasto do Odérico, aí foi fácil. O tronco descascado deslizava bem sobre o capim. Na descida, jogamos o tronco rolando morro abaixo.
Era só deixar secar uns dias, prender o prêmio, passar o sebo e levantar.
Chegou o dia de Sant’Ana. O terreno baldio ao lado do posto ficou bonito. As meninas, lideradas pela Marilda e a Preta, fizeram as bandeirolas e penduraram em postes de caibros que nós fixamos.
A fogueira, imensa, bem no centro do terreno, tinha, na base, vários dormentes velhos da linha do trem, os restantes eram troncos roliços tirados da mata do Aquiles.
O pau-de-sebo, bem untado, esbranquiçado, com uns dez metros de altura, ficou ao lado da fogueira.
No canto, perto da casa dos Ferraz, uma barraquinha para a canjica, os doces e os bolos de fubá feitos pelas meninas.
Quando a noite ia caindo, no lusco-fusco, na hora de acender a fogueira, a lua cheia dourada, imensa, para enfeitar mais a festa, nasceu entre a primeira e a segunda montanha do Aricanga.
Tivemos um pouco de trabalho para acender a fogueira. Na noite anterior havia caído uma chuva e a lenha estava ainda molhada.
Acesa a fogueira, deu-se início à festa. Alguns tentavam escalar o pau-de-sebo. Os mais espertos deixavam os afoitos tirarem o unto para, ao final, subirem.
A comida era farta na barraquinha das meninas.
O duelo ficava por conta das bombas. Quem tinha as mais fortes? Uns compraram bombas na venda do Mauro, outros na do Pedro Gabriel, na do Arsênio, do Roque. Eram todas iguais, menos as do Roque. Essas eram mais grossas e mais fortes. Eram tiros ensurdecedores. Havia também umas bombas fininhas, traques de nada, as “peido-de-velho”.
Eu não tinha bombas. Não me lembro se não as quis comprar ou se não tinha dinheiro.
Lá pelas tantas, quando os meninos discutiam quem tinha a explosão maior, eu disse que tinha uma bomba muito maior que a de todos. “Então solta. Vamos ver! Maior que estas do Roque, duvido!” Os meninos me desafiavam a provar a afirmação.
Relutei um pouco, pensei, medi , repensei e disse para esperarem que ia em casa buscar. Fui em casa e, sabendo onde papai guardava as espoletas das dinamites, apanhei uma e voltei para a festa.
Cheguei com a espoleta metálica na mão e, por sorte, tinha consciência do perigo. Todos voltaram atenção para mim. Disse: “vocês vão ver! Será uma explosão como vocês não imaginam. Afastem-se da fogueira!”
A expectativa estava formada. Demorou algum tempo para que a área em volta da fogueira fosse evacuada. Todos saíram, menos um vizinho mais doido que não acreditou muito na minha ameaça. Disse asperamente: “se Geraldo não sair eu não solto a bomba!” Geraldo, sempre ameaçando voltar, saiu um pouco, até uma distância de uns cinco metros que eu julgava segura.
Joguei a espoleta para dentro da fogueira. Pouco antes que ela atingisse o fogo, só com o calor, deu-se o estampido. Todos os paus da fogueira, com exceção dos dormentes da base, foram arremessados para fora. Tições menores foram arremessados longe. Brasas atingiram as crianças que observavam . Mesmo os que estavam prevenidos se assustaram. Da casa dos Ferraz, que tremeu, saíram todas as pessoas. Geraldo, o mais próximo, caiu e ficou branco como uma vela. Os moradores mais distantes saíram para ver o que era aquilo.
Papai, que conhecia bem aquele estrondo, já veio imaginando do que se tratava. Não perguntou nada a ninguém. Pegou-me pela orelha e foi me arrastando para casa. Eu, na ponta dos pés, ouvia dizer que nunca mais me levaria para trabalhar no mato.
Preferia ter levado uma surra. Aquela ameaça era demais. Entrei em casa chorando e arrastado pela orelha.
Felizmente, a ameaça de papai não se concretizou. Nas férias de dezembro seguinte, estava no mato com ele.
A festa de Sant’Ana se repetiu vários anos, entretanto, nunca mais se viu uma bomba como aquela.
14 de fevereiro de 2012 às 11:24
Seu pai foi muito bonzinho, se fosse o meu, vc tava sem orelha, rs rs rs !!!!!!!!!!