A Faca
06:20 Postado por Geremias Pignaton
Esta história é dos ciganos. Minha mãe não gostava deles. Toda a cidade, com raríssimas exceções, não gostava deles. Existia muito folclore a respeito deste povo de hábitos estranhos. Uma colônia italiana, como a nossa, detestava os ciganos. Minha mãe sempre me recomendava para não me aproximar deles. “Não dê conversa a este povo”. “Cuidado, eles pegam crianças”. Eu sempre fui destemido e aventureiro. Eles me causavam algum medo, mas me atraíam. Ficava fascinado com aquele povo esquisito.///
Um dia, pela manhã, ia para a escola e os ciganos tinham chegado. Eram dos ricos que se deslocavam em automóveis e caminhonetes. Eu preferia os que cavalgavam. Achava bonita a tropa. As mulas enfeitadas, as mulheres sentadas de lado nas montarias, com as saias compridas quase chegando ao chão. Os meninos pequenos, muito menores que eu, montando cavalos enormes, com enorme habilidade.///
Eles estavam armando o acampamento. Eu parei para observar, contrariando os colegas que estavam com medo. Na volta, quando o acampamento já estivesse montado, pararia e observaria melhor, com mais tempo.///
Voltei só. Os colegas haviam saído mais cedo. Tiveram aula vaga. Parei próximo ao acampamento e observei. Parecia deserto, só se via os carros e as barracas de lona amarela. Uma trempe, ao fundo, esquentava o conteúdo de um latão. Um cachorro vira-latas branco dormia próximo a um opala preto. Não se via ninguém. Fui me aproximando devagar, cheguei bem perto da primeira barraca e, com medo, parei para observar. Vi, fincada num toco, uma faca belíssima, cabo prateado arredondado com detalhes pretos. A lâmina, grande como a de um facão, cintilava ao sol. Nunca havia visto faca tão bela.///
Esqueci o medo, fascinado pelo objeto. Tomei um susto! Não sei de onde surgiu um cigano jovem, alto, sorrindo com dois dentões de ouro e perguntando-me, antes que o visse. “Oh menino, que está fazendo?” Tremi as pernas e gaguejei ao responder que só estava olhando. O cigano, sempre sorrindo, me perguntou se eu morava ali perto, se meu pai trabalhava e outras muitas perguntas sobre a minha vida. Respondi tudo da maneira mais breve possível.///
Aos poucos fui me tranquilizando e perdendo o medo. O cigano era simpático e não parecia nada com aquilo que mamãe dizia. Quando já estava bem à vontade, perguntei sobre a faca.///
O cigano disse que era o proprietário da faca, que foi um presente do seu pai e, sorrindo, disse que poderia me dar aquela belíssima e rara faca cigana. Eu já estava admirando o cigano e fiquei seduzido por aquela oferta.
Ele me apontou uma grande tina de madeira que estava no meio do acampamento e me disse que se eu a enchesse de água ele me daria a faca. Falou que já havia conversado com o seu Gilberto, dono do restaurante Califórnia, e que eu poderia pegar a água na torneira que ficava em frente ao restaurante. Poderia usar a lata que estava ao lado da tina. Era preciso umas quarenta latas bem cheias para encher a tina.///
Pensei na faca. Com ela poderia provar minha coragem aos colegas. Uma faca linda e dos ciganos. Era sedutora a ideia de possuí-la. Não por ela em si, mas pelo significado. Os colegas me respeitariam, mais do que já me respeitavam. Apenas pedi um tempo para ir pra casa trocar o uniforme e almoçar. Fui num pé e voltei noutro.///
Comecei o trabalho, empolgado. Era um trabalho duro para um menino de doze anos. Uma lata de fundo quadrado de vinte litros, daquelas que serviam de embalagem para banha de porco. Trabalhei com afinco. O peso da lata cheia me deixava torto. Tinha que parar uma ou duas vezes no trajeto para respirar. Do acampamento até ao restaurante tinha uns trezentos metros. Foram mais de três horas de trabalho duro. Concluí exausto. Se tivesse que transportar mais umas latas não conseguiria. Sentei numa banqueta próxima da barraca do cigano da faca e, enquanto descansava, aguardava que ele aparecesse. ///
Ninguém aparecia. Umas crianças brincavam por trás do acampamento. O tempo passava e eu, apesar do ombro dolorido, já estava recomposto e começava a ficar preocupado. O cigano não aparecia para receber o serviço e me pagar.///
Apareceram duas mulheres de saias vermelhas e disseram que ele havia saído e que já estava chegando.///
A noite já estava caindo. Ficava de olho na estrada para ver se minha mãe voltava do trabalho. Se ela chegasse em casa e não me encontrasse, estaria frito. Minha mãe passou, olhou para o acampamento e não me viu. ///
Quando ia procurar os ciganos para deixar recado, uma caminhonete preta entrou no terreno do acampamento. O cigano jovem dirigia o carro e corri, afoito, na sua direção. Ele saltou do carro e me saudou perguntando se havia concluído o trabalho. Respondi que estava esperando para receber a faca.///
Caminhamos até a tina, ele olhou a água, assentiu com a cabeça e tirou da cinta um punhal embainhado e me estendeu sem falar nada.///
Olhei espantado, disse-lhe que não era aquela faca que me prometera. Respondeu que a faca o pai dele não autorizou me dar e que agora me daria o punhal, inclusive com a bainha. Retirou o punhal da bainha, mostrou-me detalhadamente, disse que era uma excelente arma, com lâmina de aço, duplo fio, cabo de chifre e tinha pertencido ao seu avô. ///
Discordei com veemência, o combinado era a faca, ela era minha, eu a exigia.///
Sorrindo com seus magníficos dentes de ouro o cigano tentava me convencer do contrário. Eu estava irredutível. Comecei a chorar. O cigano me estendeu o punhal, eu o apanhei e joguei com raiva no chão. ///
Ele continuava sorrindo, isso me deixava cada vez mais irritado. Tinha vontade de espancar o cigano. Xinguei em meio aos soluços. Estava frustrado, fui enganado, humilhado, aquilo não era papel de homem.///
Fui para casa chorando e xingando o maldito cigano em voz baixa. Tinha vontade de pôr fogo naquele acampamento. À medida que ia me acalmando pensava que providências tomar. ///
Aquilo não podia ficar assim! O filho da puta tinha que me pagar. Pensei em contar para o meu pai. Meu pai iria me repreender e iria tomar explicações com o cigano. Poderia brigar e eu não queria isso.///
Contaria para meus irmãos. Aí, sim, daria briga. Era perigoso. ///
Talvez eles botassem mesmo fogo no acampamento. Podiam até matar ou morrer.///
Decidi que eu mesmo iria matar o filho da puta. Não se podia fazer o que ele fez, sem uma severa punição.///
Como iria fazer? Tinha a garrucha 380 do meu irmão. Nunca tinha atirado com ela, mas era um mecanismo parecido com o das espingardas cartucheiras que eu usava nas caçadas de jacupembas. Sabia onde estava escondida. Pegaria e esconderia na bolsa da escola junto aos cadernos, passaria no acampamento, me aproximaria do cigano e pou! ///
Fiquei com medo. Eu poderia errar e ser apanhado. Nunca tinha atirado com garrucha. ///
Outra opção era a espingarda de dois canos do papai. Com ela eu não errava. Matava as jacupembas nos galhos mais altos das embaúbas. Problema era escondê-la para me aproximar do acampamento. Poderia descer o córrego que passava perto de casa, atravessar o bueiro sob a BR, descer beirando o Rio Taquarassu, passando os quintais do Seu Emílio Lombardi, do Seu Orlando Furieri, do Uldérico Sarcinelli, fundos da serraria do Renato e, pelo meio do colonião, me aproximar do acampamento pelos fundos. ///
Conhecia tudo como a palma da mão. Bem escondido, esperaria a oportunidade de atirar no cigano. De uma distância de vinte metros, o puto estaria morto. Eu nunca errava.///
Nesses pensamentos cheguei em casa, sem mais chorar e já aliviado. Tomei uns cascudos da mamãe e nem senti. Estava absorto nos planos de me vingar daquele puto. ///
Conferi a espingarda do papai, peguei cinco cartuchos chumbo T e escondi na bolsa da escola.///
Pela manhã iria estudar e à tarde, quando não havia ninguém em casa, executaria meu plano. Estava com medo da decisão que havia tomado, mas estava determinado a executá-la.///
Naquela noite custei a dormir e acordei de manhã mais cedo que o habitual. Estava ansioso e quase não comi no café. Minha mãe percebeu e perguntou se eu estava bem. Só assenti com a cabeça. Saí mais cedo para a escola sem esperar os colegas.///
Ao passar pelo acampamento que já se mostrava movimentado, vi o puto de costas conversando com um senhor mais velho. ///
Na escola não conseguia concentrar-me nas aulas. A professora Filoca me chamou atenção duas vezes. Notou que alguma coisa estava errada.///
Na saída fiquei enrolando na sala para voltar sozinho. Pensei em desistir do plano. Estava com muito medo.///
Quando voltava da escola, parei em frente ao acampamento. O cachorro vira-latas branco dormia perto do opala preto. Alguns dos carros não estavam. ///
Vi a tina de longe e a raiva voltou quase como no dia anterior. Não se via ninguém, fui caminhando devagar e me aproximei da tina.///
Troquei imediatamente de plano. Iria derramar toda a água, assim, de certa forma, daria o troco no puto e me acalmaria.///
O cachorro me sentiu, mas tinha se acostumado comigo na véspera.///
A tina ainda estava com mais da metade da água. Olhei em volta e não vi ninguém. Tentei virar a tina. Não tinha força suficiente. Tentei novamente e nada. Olhei procurando alguém que poderia me ver e, para minha surpresa, vi a faca com a lâmina cintilando ao sol, cravada no mesmo toco da véspera.///
Fiquei encolhido atrás da tina. Uma mulher saiu de uma barraca e entrou em outra. Meu coração batia no pescoço. Olhei novamente tudo ao redor. Não se via viva alma. Fui me aproximando da faca. Pé ante pé, olhando em todas as direções. Quando estava a uns cinco metros dela, corri, peguei pelo cabo e tive dificuldade de arrancá-la do toco.////
Quando fiquei com a faca na mão, saí em disparada. O cachorro assustou-se e correu atrás de mim latindo. Eu corria como um louco. Não ouvia nada, não via nada, apenas corria. Os calcanhares batiam na nuca e quase fui atropelado por um caminhão quando atravessei a BR. Não tinha coragem de olhar para trás. Devo ter batido o recorde dos 400m. ////
Quando me senti seguro diminuí um pouco a velocidade, olhei para trás e parei. Não tinha nada, ninguém me seguia. Estava ofegante.///
Olhei a faca. Era linda! Graças a Deus não precisaria mais matar o cigano.
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