Brinquedo

04:41 Postado por Geremias Pignaton

Curió morreu tragicamente. A tora rolou, depois de pegar numa pedra, e foi para cima do boi. Papai correu para ver se podia fazer algo. Duas pernas estavam quebradas. Euclides olhou para papai, fez um não com a cabeça, sacou o revolver, seu companheiro inseparável, mirou na têmpora de Curió e disparou. O boi nem se mexeu.
Curió e Canário formavam a nossa junta de bois-guias. Eram bois experientes, grandes e fortes. Podiam, sozinhos, puxar uma tora imensa de jequitibá. Eles eram irmãos gêmeos, idênticos, todas as manchas pretas no couro branco eram iguais. Tinham o comportamento parecido. Curió era mais manso, um pouquinho menos agressivo. Canário era mais genioso, tinha uns rompantes inexplicáveis. Quando estava de veneta, quebrava o canzil e até a canga, mas não trabalhava, nem por reza braba. Conseguíamos identificá-los por um aleijão na orelha esquerda de Curió. Na verdade, a cicatriz de uma bicheira de quando ainda era bezerrinho.
Canário ficou só e não trabalhava mais. Deprimido, tristonho e gordo, dava pena vê-lo. Papai tentou encangá-lo com um boi de pé de nome Limoeiro, mas canário não aceitou, de jeito nenhum! Só havia uma solução: mandá-lo ao matadouro, ia dar muita carne. Euclides, o negro carreiro, não deixava, amava o animal, dizia que era como alguém da família.
Euclides era mineiro, do sertão, contavam que tinha fugido das guerras de jagunços. Tenho certeza que era um personagem de Guimarães Rosa, um desses que fugiram para as bandas das matas, depois de algum crime de morte. Era um carreiro competente, tinha os bois como irmãos. Quando sacrificou Curió, ficou tristonho, quase não falou por uns três dias. Papai tinha um relacionamento muito bom com Euclides, os dois se comunicavam com os olhos. Durante o arrasto das toras, não precisavam de palavras para guiar os bois e trabalhar a madeira. Papai dizia que Euclides era um homem perigoso, para atirar em alguém era daqui pra ali. Euclides falava que papai era um pai para ele e demonstrava muito respeito por toda nossa família. Ele morava numa tapera, dentro da mata, com a mulher e a filharada.
Matar não podia, Euclides não deixava. Ficar com aquele boi de canga sem parceiro, sem trabalhar, não dava. Soubemos que Santim Cera tinha um boi-guia “solteiro”, o companheiro havia morrido mordido de cobra. Papai o comprou pelo preço de boi de corte. Ia tentar encangá-lo com Canário.
Brinquedo era um boizão, um pouco maior do que Canário e Curió. Era da cor de um cavalo alazão, tinha uma mancha mais escura, quase preta, que ia da testa, percorrendo o lombo, até ao rabo.
Fui encarregado de levá-lo ao Olho D’água. Um dia a pé de Ibiraçu arrastando Brinquedo amarrado por uma corda. Saí de madrugada, ainda escuro. Brinquedo ia lento, com aquele andar de passos compridos e cuidadosos de boi de canga. A caminhada não rendia. Depois de passar pelo Córrego Fundo, parei numa biquinha, à beira da estrada, para comer a marmita que mamãe fizera para mim. Deixei Brinquedo amarrado na estaca de uma cerca e comi, rápido. Tinha muita pressa pois não queria escurecer na estrada. O boi ficou comendo uma moita de cana nova sobre o barranquinho da estrada. Quando resolvi seguir viagem, brinquedo empacou. Eu o puxava com força e ele nem se mexia. Eu gritava, batia e ele não se movia. Precisei esperá-lo acabar a moita toda, só aí seguiu. Vi que o bicho era genioso e inteligente.
O boi-guia de Santim Cera abria qualquer porteira, tanto as favoráveis quanto as contrárias. Podia ter argola prendendo a cabeça do moirão que o bicho dava um jeito de tirá-la com o chifre. Ele passava qualquer mata-burro, pisava pau por pau, até no meio, aí se encolhia, dava um salto e atingia o outro lado com as quatro patas. Era habilidoso como um elefante de circo. Antes de Brinquedo, uma só pessoa tocava a boiada de canga pelas estradas. Depois de Brinquedo, era preciso duas, um na frente e outra atrás. A da frente era para cercar nos mata-burros. Se deixássemos, Brinquedo passava o obstáculo e os outros iam atrás, caíam e se machucavam. Perdemos um bom boi de pé, assim. Quebrou a perna num mata-burro.
Canário o aceitou fácil. Deixamos os dois juntos um mês, sem trabalhar. Quando os encangamos pareciam parceiros treinados juntos. Brinquedo substituiu Curió à altura, só que Canário, com a parceria, ficou mais malandro. Os dois trabalhavam bem, melhor até do que a junta anterior. Entretanto, havia dias que não queriam, não tinha jeito. Fingiam que faziam força. A gente gritava, balançava o garrunchão, eles retesavam os músculos, faziam a posição de quem faz força, mas a corrente não espichava. Quando era assim, papai e Euclides nem insistiam, soltavam os bichos e davam folga. No dia seguinte eles trabalhavam muito melhor.
Aconteceu que, certo dia, Canário e Brinquedo
sumiram. Deixamos os dois juntos da boiada no nosso pasto, perto da serraria. Fomos para Ibiraçu num sábado, quando voltamos na segunda-feira, não os encontramos. Procuramos por toda parte e só encontramos dois fios de arame quebrados perto da mata, provavelmente por onde fugiram. Procuramos os rastros e nada, era uma época de seca, não chovia há mais de mês e, na terra dura, os bois não fizeram rastros. Sem os bois-guias quase não podíamos puxar madeira do mato. Só puxávamos toras pequenas. Sorte que o tombador da serraria estava cheio e poderíamos trabalhar por um bom tempo. Papai ordenou-me: “Tarcísio, largue o serviço todo dia mais cedo, por volta das três da tarde, e vá procurar os bois, todo dia, até achar. Procure primeiro na nossa terra, depois nos vizinhos. Comece a pé, depois vá de bicicleta pelas estradas e veja se alguém viu”.
Na primeira semana procurei em toda nossa terra, em volta do pasto, nas matas, percorri todos os arrastões, picadas, atravessei o brejão, procurei até na mata virgem do outro lado e não vi sinal. Nem um rastro na terra, nem uma bosta, nada.
Na segunda semana percorri as propriedades vizinhas. Passei nas casas de todos os caboclos e nas palhoças de todos os índios daquela região e ninguém viu nada. Não vi sinal dos dois.
Na terceira semana, corri todas as estradas de bicicleta. Passei na Praia dos Padres, nos Farinas, no Adrião, passei também em Santa Cruz, do lado de cá do canal, na Barra do Sahí e fui até a Barra do Riacho. Saía da Serraria por volta das três da tarde e voltava à noite. Num dia cheguei quase meia noite, era perigoso, havia onça, mas eu sempre levava uma espingarda.
Nas estradas pros lados de Aracruz, papai e Tio Gervásio procuraram com o nosso caminhão F-600. Todos já achavam que os bois haviam sido roubados.
Estávamos desistindo de procurar quando veio um temporal do sul. Choveu forte durante toda uma noite e no dia seguinte. No outro dia Euclides me acordou cedinho para procurá-los. Se estivessem na redondeza, acharíamos. Com a terra molhada eles deixariam rastros.
Quando saímos, encontramos rastros de bois no aceiro da mata, próximo ao pasto, fora da cerca. Contamos os animais no pasto e todos estavam lá. Só podiam ser deles. Será que estavam por ali, tão perto? Entramos na mata. Os rastros iam por uns cem metros.
De repente, encontramos os dois. Estavam deitados dentro da mata, já haviam feito uma clareira amassando o mato baixo. A clareira estava toda cagada, os bois só cagavam ali. Saíam à noite para comer no nosso pasto, pela beira da cerca, se escondiam na mata e não cagavam fora.
Perdemos quase um mês procurando e eles estavam a menos de quinhentos metros da serraria.
Alguns anos depois, Canário morreu ervado, no Picuã, pros lados de Santa Rosa. Depois, Brinquedo formou parceria com Limoeiro por anos e morreu de velho.
Ninguém quis matá-lo. Fazia parte da família.

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