Morangos de Sétimo Dia
03:11 Postado por Geremias Pignaton
A missa de sétimo dia da vovó foi feita no Seminário Comboniano. Padre Carlos, muito amigo de nossa família, achou melhor fazer na igreja de Nossa Senhora da Saúde, no interior do educandário, que é grande e podia comportar nossa enorme parentada.
No dia da missa, marcada para as 10 horas, eu, minha mãe e o meu irmão gêmeo, Isaias, chegamos com quase uma hora de antecedência. Mamãe precisava cuidar da organização da missa junto com o padre Carlos.
Enquanto aguardávamos, eu e Isaias passeávamos pelos amplos salões e corredores do imenso edifício e olhávamos os seminaristas nas salas de aula.
Chamei Isaias para irmos ao teatro, perto do campo de futebol e ao lado de um pátio, onde os seminaristas e os padres cultivavam uma horta. Lá encontramos um irmão leigo, um espanhol alto com barbas compridas e mal-encarado, trabalhando nos canteiros. Aproximamo-nos, curiosos, para ver o trabalho do irmão que cuidava com carinho de um canteiro bem no meio da horta. Olhei, ainda de longe, as plantas que se pareciam com rabanetes, todavia os frutos cresciam nos ramos. Ao nos aproximarmos mais, vi que os frutos eram iguais uma ilustração que havia no meu livro de português. Eram morangos! Fiquei muito tempo parado admirando aqueles frutos lindos, vermelhos e brilhantes.
Sempre que folheava a cartilha, imaginava o gosto dos frutos, deviam ser docinhos. Pensava que morangos dessem em árvores como as carambolas, os cajás, as pinhas, as mangas e laranjas do nosso quintal.
Num movimento quase inconsciente, abaixei-me para apanhar um. O Irmão levantou-se e, gesticulando bruscamente, gritou com forte sotaque espanhol: “não, niño! Ainda não estão prontos para colher!” O grito do irmão espanhol quase me jogou no chão de susto. Isaias também me repreendeu: “Elias, não deve mexer onde não é autorizado!”
Não conseguia prestar atenção na missa que padre Carlos conduzia com seu vozeirão. A igreja estava cheia de filhos, netos e bisnetos da vovó e o irmão espanhol barbudo estava na primeira fila com aquela carranca de bravo.
Se o barbudo estava na missa, os morangos estavam sozinhos, sem ninguém a vigiá-los. Eu conhecia muito bem o seminário e podia facilmente entrar naquele pátio, mesmo se estivesse trancado. Bastaria passar por dentro do alojamento dos seminaristas mais jovens, pular da janela ao telhado e descer pela calha para o interior do pátio.
O pensamento de roubar os morangos não saía da minha cabeça e quando voltei a prestar atenção na missa, era a homilia. Padre Carlos fazia elogios à vovó. Prestaria atenção ao sermão, mamãe certamente iria me cobrar o conteúdo, e, assim que começasse o ofertório, iria roubar os morangos.
Subi as escadas do alojamento com muita cautela e observando atentamente qualquer movimento. Escutava o cântico do ofertório com a voz da mamãe que se destacava. Pensei em desistir, mas o prêmio por aquela transgressão era tentador.
Para minha sorte, o alojamento estava deserto, só ouvia alguém conversando nos quartos dos seminaristas maiores. Pulei da janela ao telhado, caminhei, pé ante pé, até a calha, desci pela coluna e, antes de atingir o solo, saltei, caindo sobre um canteiro de alfaces.
Escolhi os morangos mais vermelhinhos e graúdos. Não comi nenhum na horta, fui enchendo os bolsos de minha calça curta. Depois dos bolsos, enchi as mãos, abri o trinco do portão fechado por dentro e saí.
No alto do morro do seminário, sob um imenso molembá, comi os morangos como se saboreasse a comida mais deliciosa do mundo. Antes de pô-los na boca, um a um, apreciava a beleza dos frutos vermelhinhos.
Deu-me arrependimento. Não por ter roubado as frutas, mas por ter abandonado a missa da vovó. Tinha uma ótima relação com ela e achava que era seu neto predileto. Nesse drama de consciência, a morte me veio à cabeça. Já tinha passado da fase de preocupar-me com ela. Pensei alto, quase gritando: “vou viver muito, existem muitos morangos no mundo para colher”.
Voltei à igreja a tempo de pegar o final e participar dos cumprimentos. Com o gosto das frutas na boca, sorri, vitorioso, para o irmão espanhol barbudo.
3 de dezembro de 2009 às 03:54
Parabéns, Gerê, pelos belos contos!!! Leve e deliciosa esta estória, como um morango!!
3 de dezembro de 2009 às 07:36
Nossa! Muito legal...Vi toda a cena passando na minha mente. Como se eu estivesse assistindo tudo. Mamãe conta muitas histórias da Nona e tem até hoje o crucifixo que ela deu aos meus pais no dia do casamento deles. Não a conheci, mas parece que ela está sempre presente.
Bjs,
Carol