Rio Farol
03:27 Postado por Geremias Pignaton
Chamava-se Zé de Zeca porque na valada onde nasceu, em Minas, Conceição do Mato Dentro, havia doze moradores, dos quais, oito tinham filhos chamados Zé. O povo de lá começou a diferenciar os Zés pelo nome do pai. Aí ficou Zé de Adão, Zé de Mané, Zé de Silvo, Zé de Melão, Zé de Paulo, Zé de Chico, Zé de Ambrós e o nosso Zé que era filho de outro Zé, de apelido Zeca, ficou Zé de Zeca, o mais importante desta história, depois de Jesus Cristo.///
Zé de Zéca ficou órfão aos doze anos após um surto de tifo que levou pai e mãe de uma só vez, juntos a dois irmãos mais novos. Ficou ele e dois mais novos ainda, um casalzinho. Os irmãos foram adotados pelo vizinho Ambrósio e o nosso herói, após dois anos vivendo na valada, tentando cuidar do pedacinho de terra dos pais, mudou-se, aos catorze anos, paras as matas do sul da Bahia, onde o rio Farol deságua no rio do Sul.///
Zé de Zeca e Zé de Adão chegaram juntos. Vieram de barco, subindo o Rio do Sul desde Prado. Era início da década de 1960.///
Zé de Adão era mais velho, um rapaz, quase homem, profissional carpinteiro. Nelsinho, o vaqueiro gerente, foi quem os trouxe para o trabalho na fazenda. Havia a necessidade de um carpinteiro e Zé de Zeca veio como ajudante do Zé de Adão. ///
Trabalharam na fazenda por mais de quarenta anos. Viram as matas caírem, os catitus, as pacas, as antas, os macucos, os chororões, as onças... Serem substituídos por vacas e bois nelores. ///
Zé de Adão adoeceu, aposentou-se e mudou para o povoado de Santo Antônio. Zé de Zeca criou família, enviuvou, aposentou também, mas continuou por lá ajudando o velho Nelsinho. Morava só, num barracão, junto às madeiras serradas, perto da Cachoeira do Ribeirão São Pedro.///
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Domingo, manhã linda de sol, Zé de Zeca ajudou na ordenha das vacas e na alimentação dos bezerrinhos recém nascidos, tomou um belo banho na cachoeira do São Pedro, depois de pegar uns pitus nos coadores armados nas pedras, alimentou as galinhas e apanhou sua bicicleta novinha para ir a uma festa na fazenda de Doutor Augusto.///
Ia na bicicleta que ganhou numa rifa lá em Santo Antônio. Preferia sempre ir a cavalo, mas queria mostrar sua sorte e a máquina novinha.///
Ao passar na sede, perto do Rio Farol, fez questão de cumprimentar a todos e mostrar o brinquedinho novo. Quase a vendeu ao Carlinhos, o negócio ficou preso apenas num porquinho que o Carlinhos se negou a dar a mais do que o dinheiro oferecido.///
Zé de Zeca partiu depois de falar bastante, contar alguns causos engraçados, fazer umas perguntas de adivinhações e tomar umas duas cachaças com torresmo na casa de um dos vaqueiros.///
Subiu o morro pedalando forte e cantando uma espécie de aboio, parecia um menino. Voltaria ao cair da noite, provavelmente bêbado, empurrando a bicicleta.///
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A esposa do Dr. Gildásio, o fazendeiro, teve uma pessoa da família doente com gravidade. Fez promessa de que, se o ente querido se recuperasse, iria instalar uma imagem do Cristo Redentor na encruzilhada das estradas da Sede da Cachoeira, do Sargento e do Piraji.///
A caminhonete trazendo a imagem parou na encruzilhada, naquela manhã ensolarada de domingo.///
Os peões arriaram a pesada imagem, o pedestal e fizeram a massa de concreto para fixá-la ao chão, utilizando água que trouxeram em dois tonéis de transportar leite.///
Pouco mais de uma hora de trabalho, a imagem branca de pouco mais de metro e meio, de braços abertos, de frente para a estrada do Piraji, estava fixada sobre o pedestal azul de mais de um metro.///
A esposa do fazendeiro rezou um terço junto com o marido e os peões, deu ordens para cercarem o Cristo com arame farpado para protegê-lo do gado e saiu para descansar na sede do Farol. À tarde, ela e o marido voltaram para Ilhéus.///
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Quando a noite vinha se fechando num escuro de breu, por volta das seis, ouviu-se o cantar de Zé de Zeca descendo o morro da estrada do Piraji. Vinha cambaleando bêbado como sempre, com a bicicleta servindo-lhe de escora.///
Parou na casa de Carlinhos para tomar um café com mandioca cozida e tentar fechar o negócio da bicicleta.///
Na fazenda ninguém usava bicicleta, tudo era a cavalo. Carlinhos queria dar um presente para a filha que morava e estudava em Teixeira de Freitas. ///
O negócio foi acertado depois de muito café e mandioca cozida. Carlinhos não dava o leitão, ia um galo índio bom de briga para o terreiro do Zé. ///
Ele partiu com o dinheiro no bolso, o galo num saco às costas, a barriga cheia de mandioca cozida e ainda bêbado. A bicicleta ficou. A filha do Carlinhos ia adorar.///
Despediu-se e sumiu no escuro. Carlinhos, sentado na escadinha da porta, fumando um cigarrinho de fumo de rolo, ainda pode ver o vulto dele, ao longe, subindo a estrada do outro lado da ponte do Farol, em meio à escuridão.///
Daí alguns minutos, quando a pequena vila da sede da fazenda se preparava para dormir, ouviu-se gritos estranhos no morro pro lado do Farol.///
Carlinhos afiou os ouvidos e, saindo de casa, gritou para os outros vaqueiros que também correram para o terreiro comum: “é Zé de Zeca, parece que aconteceu alguma coisa”.///
“O que será?” Perguntou um dos vaqueiros. ///
Carlinhos ouviu novamente. A gritaria do Zé era de horror. Se fosse há alguns anos, podia ser onça, mas tinha tempo que não se via mais.///
Carlinhos pegou o revólver em casa, botou na cinta e saiu acompanhado de dois companheiros.///
Zé de Zeca gritava desesperado, dentro do mato, próximo ao Farol. ///
Um dos homens levou uma lanterna. Mesmo com a luz da lanterna, deu muito trabalho para chegarem ao brejo onde o Zé estava. ///
Encontraram-no em meio a um taboal, enterrado na lama até a barriga e ainda desesperado.///
Estava praticamente nu. Toda a roupa fora rasgada nos garranchos do mato.
Carlinhos o arrastou para fora e, no pasto, mais tranqüilo, perguntou várias vezes: “Que foi, Zé de Zeca?”///
Zé de Zeca, com os olhos vidrados e perdidos ao longe, não respondia, apenas gemia de dor dos arranhões espalhados pelo corpo. Só respondeu quando Carlinhos deu-lhe uns safanões: “visagem, Carlinhos... Assombração... Fantasma... Deve de ser o demo... Está lá na encruzilhada... Voando com os braços abertos, a três metros de altura...” ///
Os três Peões soltaram uma sonora gargalhada. Ele assombrou-se com o Cristo instalado de manhã pela patroa, correu tentando cortar caminho pelo mato e quase morreu de medo.///
Zé de Zeca perdeu todo o dinheiro da bicicleta. O galo só foi achado no dia seguinte, morto, sufocado dentro do saco.///
Depois disso, nosso herói passou a ser conhecido por aquelas bandas como o Zé do Cristo.///
O Cristo ainda está lá, na praça da encruzilhada da estrada. Branco, com a base azul escura, de noite, parece mesmo um fantasma voando de braços abertos.///
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